terça-feira, 10 de setembro de 2013

DIA 310 – ATÉ JÁ PERÚ, LEVO-TE NO CORAÇÃO

                Meus queridos, esta é a última vez que me dirijo a vós através deste blog, e antes de mais coisas quero agradecer-vos o interesse e a paciência para me ler e o reconhecimento afectuoso que me acalentou as saudades durante os meus dez meses de Perú.

             Quando idealizei este post há quase um ano atrás, em simultâneo com o primeiro do blog, imaginei que o escreveria nos meus últimos dias no Perú, mesmo antes de partir, nostálgica, emocionada e com o coração cheio de experiências. E a semelhança dos dois títulos remeteria para o fechar deste ciclo e reviver emoções semelhantes na chegada e na partida, prevendo que viria amar e sentir tanta falta ao ir embora do Perú como havia sentido ao ir embora de Lisboa. Não me enganei nos sentimentos mas afinal já estou em Portugal há quase um mês, e os meus últimos dias em Lima foram tão agitados que não só não pude escrever como quase nem tive tempo para me emocionar e ficar nostálgica antes de partir.

                Depois da viagem a Huaraz e Chachapoyas fiquei de novo alojada na casa dos Missionários Combonianos e estive alguns dias inactiva para convalescer da minha operação aos olhos. Usava óculos há vinte e três anos e já tinha pensado muitas vezes em fazer a operação de correcção a laser, mas o valor do investimento sempre tinha sido proibitivo para a minha bolsa. Há uns meses atrás a minha querida amiga Tânia, limenha a viver em Ayacucho, foi operada numa clínica em Lima com um doutor muito competente e amável, e começou a semear no meu espírito a ideia de o fazer também. Os preços no Perú são escandalosamente inferiores aos da Europa mas a qualidade e profissionalismo não deixam nada a desejar (estamos a falar de uma clínica privada, não do serviço de saúde público peruano), e como já tinha a referência deste caso de sucesso sem complicações posteriores decidi conhecer o senhor e fazer os exames de diagnóstico e aptidão quando vim embora de Ayacucho no final de julho. Nessa altura ficou apurado que eu estava apta a ser operada (uma questão de espessura de córnea) e marcámos a operação para o dia seguinte ao meu regresso da última viagem, sete de agosto.

                Em virtude de não poder ler, ver televisão nem estar ao computador nos primeiros dias depois da operação, tive muito tempo para dormir, comer e passear. E mais uma vez fui alvo da hospitalidade e carinho dos meus amigos combonianos, imprescindíveis não só para a minha recuperação física como, sobretudo, para o meu conforto mental no aproximar das despedidas. Por esta altura já tinha ganho completo à-vontade com os seminaristas e fortaleci relações de amizade que eu sei que vão ficar para toda a vida. Encheram os meus dias de convites, conversas e gargalhadas, e confesso que me refugiei nisso para não pensar que me ia embora em breve, vivendo intensamente o momento e negando o futuro próximo. Em Lima agora é inverno o que significa céu cinzento e humidade constante, nada apelativo a passeios, mas todos os dias saí de casa para ver o mar ali no bairro de Magdalena, e no meu último fim de semana tive ainda a enorme alegria da visita da Inge e da Tânia, que vieram de Ayacucho para estar comigo uns dias e nos despedirmos definitivamente (tantos corações apertadinhos). A operação tinha corrido bem e a recuperação seguiu o rumo esperado, pelo que neste momento já não uso óculos e estou a habituar-me tão bem a este novo modo de ver o mundo que daqui a uns meses já me terei esquecido dos vinte e três anos passados.

                Por tudo isto, só agora tenho oportunidade de me sentar a pensar no que foi o Perú para mim durante estes meses. E é tão difícil usar as palavras quando o que eu tenho são imagens, sons, cheiros e emoções que formam um quadro sensorial no meu espírito, completo mas difícil de transcrever. E vocês já sabem praticamente tudo.

                Eu fui para o Perú porque queria mudar de vida. Criei a oportunidade de realizar em simultâneo dois sonhos antigos, fazer voluntariado e viajar na América Latina, e fui para tão longe e durante tanto tempo porque precisava de cortar radicalmente com a minha realidade para perceber qual era o rumo que queria dar à minha vida. Ao reler o primeiro post deste blog revivo a dificuldade da partida e recordo que deixei cá uma vida cheia de lugares e pessoas tão especiais e que me faziam tão feliz, mas que simultaneamente eu tinha chegado a um ponto em que isso já não era suficiente e precisava de mudar, mas não sabia como. E quando cheguei ao Perú, expectante e curiosa (e algo assustada também) não fazia a mínima ideia do que ia acontecer mas tinha a profunda e convicta certeza de que ia ser genial. Só podia ser, e não me enganei. O meu amigo seminarista Eddy diz que a esta certeza se chama fé. Eu digo que se chama Perú. E no Perú não é difícil ter fé porque a beleza simples da vida apresenta-se-nos com tal intensidade que é uma evidência, e não uma esperança, que estar lá será sempre inesquecível.

                O Perú é um país amável. Não só em Ayacucho, onde vivi, mas em todos os lugares que visitei nas minhas viagens, as pessoas são simples, simpáticas e acolhedores, e mesmo nas aldeias mais perdidas e isoladas das montanhas têm uma atitude curiosa e hospitaleira para com os estranjeiros. Não encontrei dificuldade em integrar-me e em pertencer, mesmo que também nunca tenha deixado completamente de sentir que era estranjeira. A vida é descomplicada, não há stress, há menos necessidades. Há muita pobreza e muitos problemas sociais, que não posso de modo algum menosprezar porque estive bem imersa neles, mas a vida é vivida através dos prazeres mais simples: comer, beber, cantar e dançar, ver filmes, conversar com os amigos, passear nas montanhas, na praia ou na selva, trabalhar, amar. Claro que esta minha visão é europeia, no sentido em que eu baixei o meu estilo de vida a um nível muito simplificado mas nunca deixei de ter mais poder económico que a esmagadora maioria dos peruanos, que vivem para trabalhar e trabalham para comer, e por isso era uma privilegiada. E nunca deixei de sentir que era intelectual e culturalmente mais instruída, de horizontes mais abertos e perspectivas mais ampliadas, tendo a simplicidade por escolha e não por obrigação. A simplicidade acarreta ignorância, conformismo e “síndromes de rebanho”, e em termos de organização, burocracia e serviço público o Perú é, sem sombra de dúvida, um país ainda muito subdesenvolvido.

                Nestas semanas do meu regresso os amigos e conhecidos que vou encontrando perguntam-me como foi o Perú, e eu sem saber o que dizer para além de “Foi genial!” respondo com outra pergunta: “O que é que queres saber especificamente?” Como podem imaginar, é difícil sintetizar dez meses tão variados numa conversa de café. Posso falar do país, das paisagens, de Ayacucho, das pessoas, dos amigos, das crianças, do trabalho, das viagens, das festas, da comida, das rotinas, das distâncias e do clima. Também posso falar das várias epifanias que tive com o passar do tempo, do que cresci enquanto pessoa, profissional e mulher, do meu último ano da década dos vinte, de pela primeira vez desde os vinte cinco anos não me ter sentido angustiada com a passagem dos aniversários e de ter descuberto o rumo para a minha vida a longo prazo. Encontrei o que vim à procura.

                E também posso falar de como me sinto em casa nesse país distante e diferente, de como criei o meu lugar a partir do zero, cativei miúdos e graúdos numa cidade onde não conhecia ninguém e agora tenho amigos para a vida e pessoas a pedir o meu regresso. Posso falar do afecto que dei e recebi ao longo de dez meses, dos elogios constantes ao meu trabalho que aumentaram indelevelmente a minha autoestima e a confiança nas minhas capacidades, na energia positiva que adquiri progressivamente ao longo do tempo e na qual passei a confiar totalmente, tendo a convicta certeza de que sou realmente capaz de fazer tudo o que quiser, se estiver disposta a mexer-me para isso.

Também posso falar das coisas más, porque as houve e o Perú não é o paraíso na terra (apesar de ser paradisíaco em muitas coisas). A principal prova disso é o contínuo sofrimento de milhares de crianças e adultos que cada dia precisam de dinheiro e apoio internacional para ver acudidas as suas necessidades básicas e melhoradas as suas condições de vida. E há quem diga, e com razão, que enquanto houver organizações não governamentais estranjeiras a fazer trabalho social o governo delega continuamente a sua responsabilidade. Eu concordo mas ao mesmo tempo penso que se deixar de haver essas mesmas organizações, as pessoas em risco social e económico vão continuar a morrer de fome, de doenças, de violência e de falta de educação (que também mata) até o governo assumir as suas responsabilidades. E enquanto eu contribuo directamente para que isso aconteça menos, espero que outras pessoas com mais experiência, formação e poder pressionem o governo do Perú. Eu escolhi fazer a diferença no terreno enquanto outros podem fazê-la na política, e eu espero que façam.

Mesmo depois de contar tudo isto a quem tenha interesse em ouvi-las ainda muito fica para dizer sobre a minha aventura solidária no Perú. O essencial é intransmissível por palavras e tem a ver com as tais imagens, sons, cheiros e emoções que formam um quadro sensorial muito completo no meu espírito. Em síntese, posso dizer que o Perú foi a realização de vários sonhos antigos que enriqueceram a minha vida e me tornaram mais feliz e melhor pessoa, e deixou uma tal carga positiva no meu presente que só com o tempo verei as suas consequências no meu futuro.


Conhecem a frase “O fácil é o que já está feito, o difícil é o que fazemos agora e o impossível é o que leva algum tempo?” Isto para mim é Perú. Até já!

Vista da minha varanda de casa em Ayacucho.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

DIA 291 – A ÚLTIMA VIAGEM: HUARAZ e CHACHAPOYAS

                O tempo passa demasiado depressa. Perdoem-me a repetição, não tenho outras palavras para expressar a minha dificuldade com este facto. Já lá vão várias semanas desde a última vez que vos escrevi, desde os acontecimentos que quero partilhar convosco. Já estou em Portugal há quase três semanas (acreditam?!) e ainda não recuperei bem do jet lag, da mudança de espaço e da frenética sucessão de horas e minutos que me leva para cada vez mais longe de Ayacucho. Mas isso é uma outra história, que vos vou contar mais tarde, no final deste blog. Agora quero falar-vos da minha última aventura nesse país maravilhoso que nunca cessou de me surpreender e fascinar.

                No sábado vinte e sete de julho, depois da despedida de Ayacucho e de quatro dias de descanso em Lima, parti de autocarro em direcção a Huaraz, uma cidade nas montanhas a sete horas para norte de Lima, a três mil metros de altura, rodeada de picos nevados apelidados de “os Alpes suíços dos Andes”. Fui com o Luís, um rapaz ayacuchano que eu tinha conhecido em abril através da minha amiga Tânia, e que tinha a particularidade de ter estado um ano como voluntário no Alentejo e falar fluentemente português. Desde que nos conhecemos que falávamos na minha língua e a força da inesperada e improvável coincidência potenciou a empatia e confiança entre nós. Por isso, quando em conversa eu lhe tinha dito que ia ter duas semanas livres para viajar no final de julho e não sabia bem para onde ir, ele convidou-me a ir com ele visitar uma amiga nessa cidade e fazer por lá umas caminhadas e passeios pelas paisagens deslumbrantes de lagoas, cascatas, neve e ruínas no meio das montanhas. Ìamos ficar alojados na casa da Haidy, ex-colega de universidade dele, e no dia seguinte chegaria também a Claire, voluntária francesa na ONG Los Gorriones em Ayacucho, para viajar conosco.

                Estou a ganhar uma certa tendência desconfortável para viagens que começam mal. Em maio foi a mochila da Cátia que não chegou quando devia e alterou os planos iniciais. Desta vez fui boicotada pelo trânsito e pela minha idiotice, em dois acontecimentos não relacionados mas sucessivos. Nesse sábado havia um trânsito infernal em Lima por ser fim de semana prolongado devido ao feriado da Independência do Perú – as “Fiestas Pátrias” – em que muita gente aproveita para ir à província visitar a família. Coincide também com as férias escolares a meio do ano lectivo, pondo meio Perú em movimento pelas estradas. Em consequência, demorámos três horas em vez de meia para sair da cidade, acabando por chegar a Huaraz com uma carrada de aborrecimento extra e bastante mais tarde do que a hora a que prevíamos jantar. A Haidy, extremamente amável e sorridente, veio buscar-nos ao terminal de autocarros e fomos a casa dela deixar as mochilas antes de voltar para o centro para beber um copo – podíamos já estar de rastos ao princípio da viagem, mas era sábado à noite e havia que comemorar as férias. Como se não fosse suficiente o stress que tínhamos apanhado pelo trânsito, eu decidi dificultar as coisas para mim mesma – fácil é aborrecido, não é verdade? – e dar um presente de natal antecipado a um desconhecido: ao sair do táxi deixei o meu telemóvel no assento sem dar conta. Não o telemóvel ranhoso com que tinha andado durante nove meses e meio com o meu SIM peruano (e que nunca perdi nem foi roubado), mas o meu smartphone oferecido por queridos amigos um ano antes, que só andava comigo quando viajava, e lá dentro os meus dois SIM’s portugueses. Quando me apercebi, um minuto depois do táxi desaparecer na curva, comecei uma jornada de chamadas sucessivas para os meus números a ver se alguma alma caridosa me atendia, mas a experança de ver de novo o objecto que concentrava em si comunicação, leitor de música, despertador e máquina fotográfica foi dolorosamente diminuindo a cada chamada perdida.

Fiquei piursa. Durante os dias seguintes ia lembrar-me constantemente deste episódio lamentável da minha estupidez e ficava temporariamente com humor de cão, mas para bem da minha sanidade mental, do espírito de viagem e da paciência dos meus amigos, esforcei-me para me conformar com a evidência de que era só um telemóvel e de que, na verdade, aquele incidente estava a ser a pior coisa que me havia acontecido no Perú (a par da infernal viagem de autocarro de Mâncora a Trujillo em janeiro) – não me posso queixar muito, não é? E assim comecei um processo de desabituação do telemóvel que durou até há poucos dias porque não tinha tido tempo (nem muita pachorra) para ir comprar um novo. Junte-se tudo isto ao facto de a minha máquina fotográfica ter sofrido um acidente na última semana em Ayacucho, e eu fiquei quase totalmente privada de tecnologia e da possibilidade de registar os momentos desta viagem. Por isso as fotos que ilustram este post foram gentilmente cedidas pelos meus companheiros (o meu computador portátil ainda está vivo, mas a bateria está a decair a olhos vistos e eu não quero agoirar, mudemos de assunto).

Huaraz, capital da província de Ancash, é uma típica cidade colonial peruana sem muito interesse não fora ser o ponto de partida para inúmeros trekkings nas Cordilheiras Branca e Negra, cujos exlibris são os montes nevados Huascarán, Pisco e Huayahuash, todos acima dos seis mil metros de altura, os mais altos do mundo a seguir aos Himalayas. E é por isto que é conhecida e incrivelmente turística, sobretudo na época alta do hemisfério norte, julho e agosto, pleno inverno nestas latitudes. Em redor da Plaza de Armas as ruas estão infestadas de agências de turismo onde se pode contratar guias e alugar material de caminhada, escalada, rafting e outras actividades de aventura. É comparada com Cuzco pelo ambiente que se vive e pela quantidade de turistas, ainda que para mim esta comparação seja um insulto. Por isso a ideia para esses dias era sair de manhã e voltar à noite, mas não perder muito tempo na cidade. Nessa noite de sábado a Haidy estava num jantar de turma do liceu, pelo que eu e o Luís fomos para o centro procurar um bar para beber uma cerveja enquanto esperávamos que ela viesse ter conosco mais tarde. Eu estava desconsoladíssima por causa do meu telemóvel e ele tentava animar-me e distrair-me. Encontrámos um bar animado numa das ruas principais, apinhado de turistas e limenhos, com boa música e cerveja a preço acessível, e contagiados pelo bom ambiente acabámos por dançar até de madrugada sem dar conta das horas e apesar do cansaço.

          Na manhã seguinte tínhamos de ir cedo buscar a Claire ao autocarro, o que significou acordar apenas um par de horas depois de nos termos deitado no chão da sala da Haidy. O plano era ir buscá-la, tormar o pequeno-almoço e apanhar o autocarro para Chavin de Huantar, uma aldeia no meio das montanhas a três horas de Huaraz onde existe um grande complexo arqueológico de ruínas pré-incas e muita natureza para observar. Estávamos todos cansados e silenciosos apesar de ser o princípio da nossa viagem, e eu previa umas férias muito pouco relaxadas se seguíssemos aquele ritmo, mas aproveitámos para uma soneca enquanto o autocarro apinhado de adultos, crianças e galinhas serpenteava pelas montanhas. Também aqui a paisagem é deslumbrante, e bastante diferente da sierra  de Ayacucho, apesar de ser a mesma cadeia montanhosa dos Andes. Nas minhas várias viagens pelo Perú constatei fascinada como as mesmas montanhas podem ser tão variadas ao longo das regiões que atravessam. Aqui em Ancash são abruptas, escarpadas e despidas, revelando paredes verticais de rocha negra que brilha ao sol intenso, em contraste extremo com os cumes de neves eternas. Nas bases das montanhas há vegetação rasteira, cactos e muita água – cascatas, rios, lagoas. A natureza é exuberante e impõe-se inexoravelmente, fazendo-nos sentir minúsculos e insignificantes. E o silêncio é espesso e enche os ouvidos como se fosse som.

 Caminho de Huaraz para Chavin de Huantar - fotos do Luís


                Em Chavín de Huantar trabalha a Brenda, outra amiga do Luís, que por ser domingo estava disponível para passar o dia conosco e nos servir de guia. A ideia era visitar o complexo arqueológico à noite (excepcionalmente aberto fora de horas pelas Fiestas Pátrias) e durante o dia fazer uma caminhada até uma cascata que havia ali na zona. Para lá chegar tivémos de apanhar uma sucessão de táxis passando por várias aldeolas perdidas – de Chavin a San Marcos, depois Huari e até Acopalca. Aí almoçámos truta frita num restaurante campestre que claramente não tinha infraestrutura para servir a quantidade de clientes que afluíam naquele domingo, e estivémos quase para ir embora sem comer tal foi o tempo que demorou – mas a fome e a ausência de alternativas falaram mais alto. Dessa aldeia sai um antigo trilho inca de duas horas pelas montanhas até à cascata Maria Jirae, onde chegámos já o sol descia no horizonte e nos sentámos a descansar e a apreciar a força da água a cair a pique desde lá de cima do topo do monte desfazendo-se numa míriade de gotas no lago cá em baixo.
  
 Haidy, eu e Brenda preparando-nos para o trilho. Foto do Luís.

Caminhando: eu, Haidy, Luis e Claire. Foto da Brenda.

Cascata Maria Jirae à vista. Fotos da Claire.



Haidy, Luis, Brenda e eu. Foto da Claire.

Para regressar empreendemos a sucessão de táxis até Chavín, onde chegámos a meio de um apagão eléctrico. Que desilusão! Sem luz não poderíamos visitar as ruínas, razão principal para lá termos ido, e íamos gastar uma noite de alojamento em vão. Estávamos cansados, desconsolados, procurámos um hostal e eu já considerava a hipótese de ir dormir às sete da noite. Sem luz não havia nada para fazer, e as ruas estavam desertas – Chavín não é propriamente uma metrópole movimentada . Mas nem tudo correu mal: uma hora depois a luz voltou e ainda havia tempo para ir às ruínas, pelo que não perdemos a viagem. Tivémos também o privilégio de uma visita guiada à borla, já que no complexo arquológico trabalha a Natali, uma arqueóloga amiga da minha amiga Stefani, limenha a trabalhar em Ayacucho, com quem eu tinha contactado uns dias antes e que amavelmente se ofereceu para nos mostrar o lugar. É verdade, toda esta viagem foi um encadeamento venturoso de amigos dos meus amigos, todos amáveis e super prestáveis, fazendo-me sentir como as cadeias de afecto podem funcionar tão bem através dos seus vários elementos, e deixando-me a extrema vontade de poder eu retribuir de alguma forma no futuro. Talvez não a estas pessoas directamente, mas quem sabe a amigos de amigos seus.

         Estava reunido um grupo do mais heterogéneo e curioso que se possa imaginar: eu, portuguesa; o Luís, ayacuchano e “o homem do grupo”; a Claire, francesa silenciosa e atenta; a Brenda, limenha faladora de origem africana com o cabelo às trancinhas; a Haidy, ancashina sorridente, e a Natali, também limenha, baixinha, magrinha, simpatiquíssima e esclarecedora. A visita às ruínas foi uma revelação. Eu não sabia nada de nada sobre a civilização Chavin, nem sequer sobre a sua existência, tendo lá ido por pura sugestão do Luís – nestes dias abdiquei do meu espírito de iniciativa e deixei a função de guia, que muitas vezes assumo, totalmente nas mãos dele. O complexo arqueológico cobre uma vasta área de planície e colinas da qual se estima que apenas dois porcento esteja já escavada. Desta parte, só metade está aberta ao público, e é tal quantidade de pedra que assusta especular sobre a dimensão total. O sítio de Chavin parece ser uma cidadela antiga com um centro cerimonial constituído por praças circulares, paredes esculpidas e galerias subterrâneas. A Natali contou-nos o que se sabe sobre esta civilização que floresceu ali cerca de mil anos antes de Cristo, e paralelamente revelou-nos o trabalho dos arqueológos, as estratégias de intervenção e as teorias explicativas. O ambiente misterioso catalisado pela escuridão parcamente combatida com candeeiros pontuais ao longo dos trilhos, as paredes altas de pedra branca contra o céu pejado de estrelas e o cansaço extremo do dia imprimiu uma recordação de intenso dramatismo daquela visita e daquele lugar.

Chavín de Huantar à noite. Fotos da Claire.





À chegada ao hostel, apesar de ainda ser cedo, caímos nas camas de um dormitório comum e acordámos às três da manhã seguinte, para apanhar o primeiro combi de regresso a Huaraz. Outra vez poucas horas de sono, de novo viagem longa pelas montanhas, outro dia de cansaço. Não sei como aguentei tanto sem cair para o lado, sobretudo considerando que passávamos os dias a caminhar depois de quase não ter dormido. É energia de viagem!                                  

Essa segunda-feira vinte e nove de julho, dia da indepêndencia do Perú, foi o mais bonito de Huaraz: chegámos de manhãnzinha, dormimos uma sesta matinal, tomámos um duche e o pequeno-almoço em casa da Haidy e arrancámos para a Lagoa de Llanganuco, na base do monte Huascarán. Para lá chegar é preciso apanhar um combi até à vila de Yungay e daí caminhar três horas ou apanhar um táxi. Optámos pelo táxi. A lagoa fica a uma hora pelo meio das montanhas, seguindo uma estrada serpenteante que atravessa aldeolas e campos cultivados. À medida que se sobe a vegetação vai diminuindo, acentuando a inclinação das paredes de rocha negra contra a estrada estreita e íngreme. A Lagoa de Llanganuco é na verdade um conjunto de dois lagos sucessivos: o mais longínquo é azul, o seguinte é verde. O taxista deixou-nos no primeiro e caminhámos até ao segundo (uma hora de trilho), onde ele estaria à nossa espera para nos levar de volta a Yungay. As cores da água são deslumbrantes, azul e verde turquesa cristalino como o mar das Caraíbas, mas em versão gelada. Caminhámos ao longo da estrada deserta com as lagoas do lago esquerdo e pequenos lagos do lado direito, completamente rodeados de escarpas negras e, atrás, montanhas brancas de neve. Com um sol luminoso sobre as nossas cabeças todas as cores eram vibrantes e o contraste dos azuis com o preto e o branco era de cortar a respiração. Ao longe, na margem da lagoa, havia vaquinhas a pastar, pequenos pontos negros no prado castanho. Que paisagem, que lugar, que benção estar ali! Obrigada PachaMama. Até o frio cortante era delicioso, porque fazia apetecer o sol na cara. E foi então que se deu uma coincidência inesperadíssima: encontrei a minha amiga Emilie, uma rapariga belga a trabalhar em Ayacucho, que eu sabia que estava por aquelas bandas com o irmão, naqueles dias, para escalar o monte Pisco, mas que eu não podia contactar por ter perdido o telemóvel. Tinha pensando muito nela naquela manhã, com muita pena porque ia perder a última oportunidade de me despedir definitivamente antes de ir embora do Perú, quando passa por nós, no meio daquele deserto natural sem uma alma à vista, um táxi com ela e o irmão lá dentro, de regresso da escalada. Caracinhas! Abraçámo-nos estupefactas e emocionadas pela improbabilidade daquele encontro e combinámos jantar no dia seguinte, o último em que ainda estaríamos todos juntos em Huaraz.

  Vista do monte Huascarán a caminho da Lagoa de Llanganuco. 
As seguintes fotos são do Luís, da Claire e da Brenda.

Companheiros de viagem: eu, a Claire, o Luís e a Brenda.





  
   
Não são vaquinhas na distância, são a Claire e o Luis. Foto minha na máquina do Luis.

Queridos ayacuchanos: o Luis, eu e a Claire

                De regresso a Yungay almoçámos numa tasquinha e fomos visitar o recinto do Campo Santo: os restos da cidade original que ficou completamente soterrada por uma avalanche do Huascarán nos anos setenta. Morreu praticamente toda a população e hoje em dia pode ver-se o que sobrou do tecto e das torres da catedral e o monte do cemitério, sobressaíndo de uma camada de cerca de sete metros de lama e terra que cobriu as casas e as ruas. Por toda a zona estão espalhados pedregulhos do tamanho de autocarros que foram projectados do alto da montanha para ali, e à entrada há um pequeno museu ao ar livre com fotografias do antes e do depois. É impressionante e comovente. Ao fundo do vale, sobre o que era a antiga Plaza de Armas, foi construída uma imitação da fachada da catedral original, e dali obtém-se uma vista inesquecível do Huascarán, que se ergue imponente nos seus seis mil metros de altura nevados. Ficámos por ali um bom bocado a descansar ao sol, a dormir uma sesta, a apreciar a paisagem. O Luís tinha vontade de empreender uma escalada ao cume da montanha, mas não obteve da nenhuma de nós o apoio moral necessário para passar das palavras à acção. Fiquei com pena dele, mas escalar montanhas não é algo que me puxe. Caminhar trilhos nelas, isso sim.


Reconstrução da fachada da catedral original da antiga cidade de Yungay. A alameda cobre actualmente a antiga Plaza de Armas, soterrada por cerca de sete metros de lama e neve nos anos setenta.
Fotos da Brenda.

Huascarán visto do Campo Santo de Yungay. Foto do Luis. 

           Voltámos para Huaraz a meio da tarde num combi apinhado de peruanos, passeámos um pouco pela rua principal e pela Plaza de Armas, bebemos um capuccino e fizémos compras para o jantar. Nessa noite cozinhámos em casa da Haidy, que ficou até tarde na conversa com o Luís enquanto eu e a Claire roncávamos felizes nos colchões insufláveis. Não fosse o frio teria sido uma noite perfeita, mas tivémos de dormir com casaco, gorro e cachecol dentro do saco-cama, e meias de lã e a toalha de banho nos pés.

          Na manhã seguinte acordámos tarde e sem despertador, tomámos um pequeno-almoço delicioso de pão de trigo fresco cozido a lenha no forno da mãe da Haidy e saímos para uma caminhada até ao cimo de um monte ali perto para ver umas ruínas pré-incas. As nossas anfitriãs disseram que era uma caminhada de uma hora colina acima, os habitantes das aldeias por onde passámos davam-nos informações contraditórias sobre distâncias e tempos, e o sol brilhante queimava tanto que parecia verão e derretíamos debaixo da roupa, progressivamente carregada às costas à medida que subíamos mais e mais. A ideia era ir a pé até às ruínas e depois descer de combi, mas quando passava um por nós questinávamo-nos se tínhamos tomado a decisão mais sensata. Valeu a pena pelas aldeiazinhas por onde passámos, que me faziam lembrar a terra do meu pai no distrito de Viseu, pelos agricultores, crianças, vaquinhas e cães que encontrámos pelo caminho. É um prazer caminhar rodeada de tão bela paisagem e em tão boa companhia. O Luís eu já conhecia relativamente bem, a Claire eu só tinha visto uma vez em Ayacucho quando nos apresentaram, e estava a ser uma boa descoberta. Adoro quando companheiros improváveis se juntam com o objectivo único de partilhar uma viagem e nasce uma pequena família, única e irrepetível no tempo, no espaço e na memória, em que os feitios se compatibilizam sem grandes esforços e cada um se sente aceite e confortável. Isto exige uma grande dose de tolerância e adaptabilidade, e eu fui muito, mesmo muito sortuda durante a minha estadia no Perú porque quase todas as pessoas com quem viajei tinham estas características em abundância. Quando cada um deixa de puxar para o seu lado, acabamos por puxar todos na mesma direcção, e partilhamos momentos intensos e inesquecíveis. Chegámos às ruínas não uma mas sim duas horas depois, para darmos com a fronha numa casa de pedra da civilização Wari (séculos onze a treze, até serem dominados pelos Incas) bastante grande, bem conservada e impressionante pela técnica construtiva, mas dificilmente justificativa, por si só, da caminhada até lá. O verdadeiro prémio foi o almoço de sopa de fava e truta frita num cafézinho no recinto com vista para as montanhas. Descemos de combi e fomos a uma esplanada no centro da cidade beber uma cerveja enquanto se ia acabando o sol daquele dia.

Trilho para Willkawain. Fotos do Luis.


 
Campo e ruínas de Willkawain. Fotos da Claire.



                Desde que tinha saído de Lima que eu vinha com o desejo de aproveitar os meus dez dias de viagem para conhecer algo mais do que Huaraz. Habituada a estar no máximo dois dias em cada terra achei que era tempo suficiente para aproveitar para ir a outra zona do Perú. Além disso, o Luís só tinha uma semana de férias, pelo que no sábado seguinte teria de regressar a Lima para depois seguir para Ayacucho, deixando-me com quatro dias de viagem sozinha ou regressando antecipadamente, pois eu só teria de forçosamente voltar à capital na terça-feira seguinte. Por isso a ideia de sair de Huaraz mais cedo e separar-me do Luís vinha ganhando peso desde que começámos a viagem.

                Numa visita de fim de semana a Lima em fevereiro conheci um casal de amigos do Àdrian, o meu amigo limenho amigo da minha querida Isabel (lá está a cadeia dos afectos), acabados de chegar de um trekking de vários dias no norte do Perú, na região de Chachapoyas, que culminava num complexo arqueológico de grandes dimensões e profundo significado. Ainda recordo vividamente, e jamais esquecerei, o entusiasmo gaguejante e o brilho nos olhos ao contarem a experiência exclamando: “É o Machu Pichu do norte do Perú, e daqui a uns anos vai ser super turístico!”. Desde essa altura que fiquei, obviamente, em pulgas para lá ir, mas nunca mais tinha pensado a sério nisso por não vislumbrar a possibilidade de o fazer. Voltei a lembrar-me quando agora se me apresentou o tempo para viajar. Andava a pesar a hipótese de ir sozinha já que o Luís não tinha tempo suficiente, mas o remoto da região e o alto nível de aventura e inesperabilidade faziam-me hesitar. E depois de ter perdido o telemóvel passei a sentir-me muito mais vulnerável por não ter como pedir ajuda ou informações caso algo acontecesse. Andei os três dias em Huaraz sem saber o que fazer adiando diariamente a decisão. Mais uma vez, PachaMama me deu um sinal de protecção e o Perú mostrou-me que se desejar mesmo muito uma coisa e procurar todos os meios para a realizar, invariavelmente acaba por acontecer: a Claire tinha um mês livre para viajar no Perú e nenhum plano específico para seguir; quando lhe propus vir comigo quatro dias a Chachapoyas fazer o trekking, ao princípio pediu-me tempo para ponderar (pois inicialmente tinha pensado ficar a semana toda com o Luís), mas depois aceitou alegre e entusiasticamente. Além disso, o Luís tem uma amiga francesa dona de uma agência de viagens em Chachapoyas, com quem falei para nos contratar um guia e organizar o trekking. Foi uma autoestrada de facilidades! E essa amiga do Luís tinha sido voluntária e coordenadora na mesma ONG da Claire uns anos antes. Família, portanto!

       Então nessa terça-feira trinta de julho jantámos com a Emilie e o irmão numa hamburgaria de Huaraz antes de eu e a Claire apanharmos o autocarro para o norte. O Luis ainda dormiu essa noite em casa da Haidy e no dia seguinte seguiu viagem para uma comunidade ecológica noutra zona das montanhas de Ancash. Foi a despedida final, até à próxima que não sabemos quando, e ecoavam nos meus ouvidos as palavras dele nessa mesma manhã, sentados no passeio a apanhar sol, com o seu português de pronúncia latina afectuosa: “Vou ter saudades tuas”. Não convivemos muito em Ayacucho nem me habituei demasiado a ele, mas mesmo assim ganhámos familiaridade e foram muito bons aqueles dias juntos. Custou-me dizer adeus e fiquei outra vez emocionada, como na partida de Ayacucho na semana anterior, com as caritas das minhas crianças gravadas na memória. E foi assim que eu e a Claire, sem quase nos conhecermos, empreendemos um troço de viagem juntas passando de cinco a duas, rumo à aventura extraordinária que nos esperava a norte e que iria coroar em grande a minha despedida do Perú, o meu amado país de adopção onde me sinto em casa onde quer que vá, mesmo que não conheça ninguém, porque ali são todos uma grande família apesar das diferenças. Ou pelo menos eu senti sempre isso.

Para ir de Huaraz a Chachapoyas demora-se uma noite de viagem até Trujillo, daí quatro horas até Chiclayo seguindo a costa, e de novo outra noite para chegar à cidade capital da província de Amazonas, já depois de atravessados os Andes, na transição entre serra e selva – no total vinte horas de viagem. Chegámos a Trujillo às quatro da manhã e tivémos de esperar no terminal até às sete para que abrissem as bilheteiras e pudéssemos comprar o resto da viagem. Já me tinha passado um pouco de tudo no Perú mas ainda me faltava dormir num terminal de autocarros, e foi o que fizémos naquela madrugada, encaixadas entre as mochilas e tapadas com as toalhas, rodeadas de outros passageiros na mesma situação. A certa altura chegou outro autocarro cheio de turistas adolescentes provavelmente australianos ou canadianos e os vigilantes do terminal acordaram “amavelmente” os dorminhocos para deixarem lugares livres para sentar. E então aprimorei e minha técnica de dormir sentada. Quando abriram as bilheteiras disseram-nos que já não havia bilhetes para Chachapoyas para aquela noite. O nosso trekking começava no dia seguinte e eu não tinha dias suficientes para estar a adiar. Então informaram-nos que na outra ponta da cidade havia outro terminal de onde saíam autocarros para o mesmo destino. Lá fomos nós de táxi, sonâmbulas e estremunhadas mas não sem regatear o preço, para bater com o nariz na porta porque ali só abriam às oito. Dormir sentada mais um bocadinho para aproveitar todas as horas de sono disponíveis tornou-se um pequeno ritual.

Os autocarros para Chachapoyas saem às quatro da tarde, fazem uma paragem em Chiclayo à hora do jantar e depois seguem viagem. Isto significava que ficávamos com oito horas livres em Trujillo. Enquanto não conseguíamos raciocinar decentemente sobre o que fazer com tanto tempo decidimos ir para o centro tomar o pequeno-almoço. Eu já tinha estado naquela cidade em janeiro com a Celsa, mas na altura não a visitámos e fugimos directamente para a praia de Huanchaco (e as aulas de surf!). Agora tive oportunidade de conhecer a Plaza de Armas, as ruas em redor e visitar dois museus, um dos quais (de Arqueologia e Antropologia) sobre as várias civilizações que habitaram a costa norte do Perú desde há milénios atrás até à dominação inca e depois a chegada dos espanhóis. Muito interessante! E depois, outra surpresa inesperada (numa viagem recheada delas), e esta daquelas de me fazer feliz por muito tempo: a Claire manifestou o desejo de ir ver o mar nas horas que ainda tínhamos e sem planear com antecedência dei por mim de novo na praia de Huanchaco onde fui tão feliz em janeiro. Que emoção estar ali outra vez! Estava tudo igual! À medida que o combi avançava ia explicando à minha companheira o que estávamos a ver, os melhores hosteis para ficar, restaurantes para comer e, claro, a melhor escola de surf. Ao contrário de em Trujillo, ali o sol brilhava esplendoroso e apesar de supostamente ser “inverno”, estava calor e havia gente a tomar banho. Ficámos algum tempo sentadas na areia a ver o mar e a apanhar sol, e as imagens, sons e cheiros de seis meses antes vinham-me à memória. Estava tão feliz! Huanchaco é a minha Caparica do Perú, e provavelmente se me obrigassem a voltar para este país era aqui que eu escolheria viver, se pudesse escolher. Antes de ir embora passámos na escola The Wave para dizer olá e foi agradável constatar que se lembravam de mim e do meu nome. E tal como em janeiro, se agora fechar os olhos ainda consigo ver claramente o brilho do mar e ouvir o som das ondas. Que abençoada surpresa.
Huachaco. Foto da Claire.

Apanhámos o autocarro da empresa Kuelap à hora prevista, mudámos em Chiclayo onde nos deram jantar e dormimos a noite toda até Chachapoyas, onde chegámos às cinco da manhã. Nas terras pequenas não há terminal de autocarros e os escritórios das agências fecham no final do horário de expediente. Por isso àquela hora o desembarque e a recolha das bagagens foi feito literalmente no meio da rua. Depois de duas noites de autocarro o cansaço voltou a acusar e o cérebro demorou a arrancar, pelo que ficámos uns instantes, de novo sonâmbulas e estremunhadas, com as mochilas no meio do passeio sem saber o que fazer. A agência de turismo da Christelle, a amiga do Luís, ficava na Plaza de Armas, e ela tinha-nos arranjado um hostel onde poderíamos tomar um duche antes de começar o tour nessa mesma manhã. Por isso apanhámos um táxi para ir esperar por ela à porta da agência. Ao longo do caminho (na verdade, foram cinco minutos pagos a peso de ouro) vimos ruas cheias de gente, e quando chegámos à praça encontrámo-la repleta de multidões eufóricas a dançar ao som de bandas ao vivo. Eram cinco da manhã e ainda estava escuro! Eu que até aí estava um pouco preocupada por ter de esperar à porta da agência àquela hora, naquele momento fiquei surpreendida porque parecíamos ter caído em cheio numa cidade dominada pela loucura. Os dançarinos eram sobretudo jovens com os seus uniformes de colégio e eu não conseguia perceber se ainda estavam acordados desde a noite anterior ou se tinham acordado de madrugada para vir dançar para a praça. Era tal a multidão em delírio que quando vi a Christelle ao longe tive de me pôr aos pulos para ela me ver a mim. Não nos conhecíamos, mas gringas numa pequena cidade do Perú nunca passarão despercebidas. E depois das apresentações ela explicou-nos que naquele mesmo dia, primeiro de agosto, começavam as festas da cidade, que se estendiam por duas semanas durante as quais haveria música de manhã à noite por todo o lado.

A Christelle é francesa e vive em Chachapoyas com o namorado, Olivier. Ambos viajaram largamente pela América Latina e foram voluntários (e depois coordenadores) na ONG Los Gorriones em Ayacucho. Apaixonaram-se pelo Perú e sobretudo por aquela região, tendo decidido criar uma empresa de turismo e fixar-se aqui. Nos dias seguintes eu ia perceber porquê ao dar-me conta da imensidão de lugares históricos e naturais de uma beleza singular que aqui existem, muitos mais dos que o que eu já tinha ouvido falar. Tomámos o prometido duche no hostel Aventura Backpacker’s Lodge, do Sr. Ricardo (também ele francês), refizémos a mochila para os quatro dias deixando lá o resto da bagagem, mas não tivémos tempo para pequeno-almoço porque o guia já estava à nossa espera para partir. Só deu para comprar pão, água, bananas e chocolate numa mercearia, e corremos para o princípio da nossa aventura. Inicialmente eu pensei que seríamos integradas num grupo como no Caminho Inca, e na verdade muitas das minhas expectativas estavam condicionadas por essa experiência anterior. Mas ao longo dos dias seguintes todos os meus critérios iriam ser reposicionados ao contexto de Chachapoyas.

Esta região é riquíssima em potencial turístico mas ainda muito pouco conhecida. A maioria dos visitantes são peruanos e os poucos estranjeiros são mochileiros. Neste momento ainda é possível disfrutar destes lugares com esse sabor delicioso de se ser o único turista e de as coisas ainda poderem acontecer com simplicidade, mas isso está a mudar aos poucos, daqui a uns anos será tão turístico como Cuzco. Por isso agora não havia nenhum grupo, não havia mais turistas para o trekking além de nós, havia apenas um rapaz de Lima que iria conosco no passeio de carro do primeiro dia e depois voltava a Chachapoyas, pelo que depois seríamos apenas três: eu, a Claire e o Ronald, o nosso guia. Ao princípio fiquei bastante constrangida e a Claire partilhava da mesma sensação, mas com o passar do tempo fomos ganhando familiaridade e acabou por ser uma situação completamente diferente do Caminho Inca mas igualmente intensa, bela e inesquecível. Eu ia com muito medo das comparações e das expectativas, e apesar de ao longo da viagem ter pensado muitas vezes “Isto no Caminho Inca não foi nada assim…” graças a Deus esta experiência foi suficientemente diferente para não fazer sentido qualquer comparação, e quatro dias depois eu senti-me abençoada por a ter podido viver.

O primeiro dos quatro dias de tour organizado pela agência Perú Nativo consistiu num passeio de carro por vários lugares arqueológicos na zona da aldeia de Lamud, a uma hora para oeste de Chachapoyas. Saímos às sete e meia aceleradas pela rápida sucessão de eventos, e em Lamud pudémos tomar um café e alugar umas galochas de borracha para a visita à Caverna de Quiocta. Eu não estava a perceber bem a necessidade dos apetrechos até pararmos num planalto verdejante no meio das montanhas e começarmos a descer umas escadas na encosta para chegar à entrada da gruta. Estava a ter uma dificuldade enorme em começar aquela viagem, a minha cabeça andava à roda com todas as coisas que tinham acontecido em pouco tempo e ainda não tinha conseguido focar-me no aqui e agora. E a quase total ausência de conhecimento prévio sobre os lugares a visitar – sabíamos apenas que íamos fazer um trekking brutal a acabar nas ruínas em Kuelap, passando por outros lugares incríveis, mas sem saber quais – não nos preparou minimamente para o impacto do que estavávamos para ver, aumentando-o exponencialmente.

A Caverna de Quiocta é uma sucessão de corredores e galerias subterrâneas com quase um quilómetro de comprimento a cerca de cinquenta metros de profundidade. No interior a luz natural morre logo no primeiro corredor, e corre uma nascente que enlameia chão e paredes tornando a sua travessia algo perigosa se não houver iluminação. Equipados de lanternas e um foco potente avançámos lentamente pelas cavidades pejadas de estalactites e estalagmites e enterrando-nos na lama até aos joelhos – daí as galochas. As galerias onde desembocam os corredores são circulares e muito amplas, com vários metros de largura e altura, quais salões de baile de um palácio rochoso. Os tectos são quase perfeitamente planos e as eflorescências parecem esculturas humanas. É incrível pensar que aquelas obras de arte tão perfeitas e completamente naturais permanecem na escuridão total a maior parte do tempo. O Ronald ia partilhando várias informações curiosas enquanto nós tentávamos não escorregar nem morrer nas lamas movediças e contou-nos da utilização milenar daqueles espaços pelos habitantes locais e por shamanes em rituais ancestrais de culto à vida e à fertilidade, ainda realizados nos dias de hoje. Quando chegámos à última sala acessível parámos junto a um pequeno lago, a Fonte da Fertilidade, e ele disse para apagarmos as lanternas e nos calarmos. Ficámos assim em silêncio durante um tempo indeterminado naquele vazio negro em que era impossível descortinar qualquer forma por mais que os olhos se habituassem à escuridão. Não havia um fio de luz natural a entrar por nenhum orifício. E eu assustei-me com a impossibilidade total de sair dali caso as lanternas falhassem.

A certa altura começámos a ouvir uma melodia arbitrária de sons graves como um xilofone ou uma flauta de pã àspera. Não conseguia identificar a proveniência apesar de ser claro que era o Ronald a tocar qualquer coisa. Os sons enchiam o espaço sensorialmente apertado pela escuridão, ecoavam por toda a caverna e regressavam numa cascada sonora. O facto de não ver aumentava as sensações nos outros sentidos e fiquei com pele de galinha. É difícil descrever por palavras este momento, que me apagou da mente todos os acontecimentos das semanas anteriores e me fez entrar totalmente naquela viagem, no aqui e agora. Quando voltámos a acender as lanternas o Ronald fez-se de desentendido e negou a autoria dos sons durante vários minutos mas não conseguiu evitar um meio sorriso denunciador. E depois apontou-nos umas estalagmites ocas da nossa altura e em forma de folha de papel crepe, que ao tocar com os dedos produziam sons quais tubos de órgão, variando o tom em função da espessura. Incrível! A natureza é de facto artista primordial!

Dali já não podíamos avançar mais, a sala seguinte estava reservada para os shamanes que ainda lá realizam os rituais ancestrais e o resto da gruta era inacessível. Voltámos para trás, percorrendo de novo o trilho coberto de lama e tentando não cair nas poças de profundidade insondável. Sentia-me nas Minas de Mória do Senhor dos Anéis. A certa altura encontrámos outro grupo de turistas com um guia amigo do Ronald, em sentido contrário, constituído por duas famílias com crianças pequenas. Perguntaram sobre a dificuldade da caminhada e nós, entreolhando-nos, não quisémos assustá-los mas não podíamos deixar de os precaver: havia ali miúdos que podiam ficar enterrados quase até ao pescoço. O guia falou com o Ronald num espanhol aquechuado que mais ninguém percebeu – os turistas seriam muito provavelmente limenhos – e ele respondeu-lhe num tom que parecia um raspanete discreto, e depois passou-lhe a lanterna que eu levava na mão. Mas não explicou nada a ninguém. Eles pegaram nos miúdos ao colo para prosseguir e nós olhámos uns para os outros pensando nas partes mais escorregadias do percurso. Aquilo não ia correr bem, mas eu desejei intensamente que corresse. Fiquei com a sensação, não provada, de que o outro guia não estava a cumprir todos os requisitos de segurança e que o nosso guia o teria chamado à atenção. Não chegámos a saber porque não nos voltámos a cruzar com eles.

Descampado sobre a Caverna de Quiocta. Fotos da Claire.

 Acesso à Caverna.

Entrada




 Um órgão de tubos natural


Regressando à superfície em direcção ao carro passavam por nós mais visitantes bem vestidos com um ar óbvio de férias e de passeio, contrastando com as nossas vestimentas simples de viajantes mochileiras e as botas enlameadas para as quais olhavam surpreendidos (a maioria não tinha). Não fiquei lá para ver os resultados à saída, mas agradeci mentalmente por ter um guia que apesar de um pouco rude parecia bastante consciencioso, e foi nessa altura que comecei a confiar nele.

Almoçámos numa tasquinha numa aldeia a cerca de uma hora dali e seguimos para outra zona nas montanhas onde estão os sarcófagos de Karajia, umas tumbas de cerâmica encastradas na ravina a vários metros de altura. Os sarcófagos à escala humana têm formas antropomórficas, pertencem à cultura dos Chachapoyas, senhores desta região até à expansão do Império Inca e posterior domínio espanhol, e estão inacessíveis porque o caminho utilizado para os transportar terá sido destruído para proteccção dos corpos contra sacrilégios. No seu interior foram encontradas múmias em diferentes estados de conservação, que estão agora no Museu da Cultura Chachapoyas na cidade de Leymebamba, e os sarcófagos são apenas observáveis da base da escarpa, não sendo possível aproximarmo-nos. Para os ver é preciso caminhar uma hora por um trilho que atravessa uma aldeia e os seus campos cultivados, descer a ravina e voltar a subir. Do lugar onde estão pousados observa-se uma paisagem bela de montanhas verdejantes de ceja de selva (a denominação dada às zonas de transição entre a serra e a selva) – de facto uma vista incrível para toda a enternidade.

Caminhada até aos sarcófagos de Karajia. Fotos da Claire. 



Este dia terminou no vale de Huaylla Belen. A nossa primeira visão desse lugar foi da estrada no cimo da montanha, quando começámos a descer. É uma visão impressionante: um vale largo e plano coberto de pasto verde, entalado entre montanhas, pejado de vaquinhas e banhado por um rio estreito que o atravessa não a direito, mas aos ziguezagues em forma de serpente. A cada curva e contracurva da estrada sustíamos a respiração pela aparição momentânea do panorama. A certa altura avistámos uma casinha no meio do nada, qual refúgio de montanha, e o Ronald disse que era ali que íamos dormir. Eu e a Claire olhámos uma para a outra incrédulas de entusiasmo.

O motorista e o rapaz de Lima (dos quais sinceramente não recordo o nome) voltaram para Chachapoyas e deixaram-nos ali com as mochilas e as provisões. A casinha foi contruída numa das pontas do vale pela Cáritas Perú num programa social de incentivo ao turismo vivencial, para a pernoita de visitantes à região. Tem uma camarata com cinco beliches, roupa de cama e muitos cobertores, uma casa de banho com duche e uma cozinha com lava-loiça, fogão e utensílios. Tem água (fria) mas não tem electricidade. Tem um alpendre com uma grande mesa e vista para o vale, o rio, as vaquinhas e as montanhas. A presença de inquilinos anteriores, denunciada pelos restos de velas, pacotes de açúcar, frascos de geleia de morango e café instantâneo transmitia um sentimento de cumplicidade com esses desconhecidos com quem estávamos a partilhar, à distância de tempo, aquela experiência venturosa.

 O impressionante vale de Huaylla Belen visto de cima. Fotos da Claire.


A nossa casa por uma tarde e uma noite.




A partir daqui não tenho, muito tristemente, mais fotos para ilustrar este relato. A câmara da Claire estava a ficar com pouca bateria, ela não tinha trazido o carregador, e como queria guardar para a chegada à fortaleza de Kuelap no último dia do trekking, decidiu desligá-la nesta altura. Por isso, infelizmente, as imagens da parte mais intensa e inesquecível desta nossa aventura ficarão para sempre gravadas apenas na nossa memória. E eu tentarei transmitir-vo-las o mais fielmente que me for possível por palavras, estes instrumentos perigosos, dúbios e parcos na descrição das emoções. E vocês terão de acreditar em mim, se quiserem :)

Depois do reconhecimento inicial aos aposentos o Ronald disse que íamos à pesca do jantar e que se não apanhássemos nada não comíamos. Por aquela altura nós já sabíamos que ele falava sempre através de piadas, e que quando queria dizer algo importante avisava: “Ok agora isto é a sério”. Por isso não aceitámos a ameaça de dormir sem jantar quando saímos para o rio atrás dele, que levava na mão apenas um carreto de fio de nylon com um anzol na ponta. O sol ia a meio da sua descida para o horizonte e a brisa antecipava o frio que viria com a noite. Naquele rio havia muitas trutas apesar de eu não ter visto nenhuma, nem mesmo no exacto momento antes de elas morderem o isco e serem sacadas cá para fora, não percebendo como é que o Ronald as via e as apanhava. Não consegui aprender a pescar à linha, na verdade o nosso guia não demonstrou muita paciência para nos ensinar, mas apreciei intensamente o ambiente em redor. Havia vaquinhas de todas as cores a pastar calmamente enquanto nós deambulávamos pelas vertentes baixas, lançávamos pedras saltitantes e esperávamos que o número de trutas apanhadas fosse suficiente para voltarmos para casa, o que só aconteceu três horas e quatro trutas depois.

Nessa altura, o Ronald confessou que na verdade as trutas eram para o pequeno-almoço, porque para jantar teríamos sopa de massa com frango e verduras cozinhada por ele. Então mas…? E foi aí que eu percebi que aquela pessoa era uma personagem muito peculiar que não nos ia tratar como princesas, como os guias do Caminho Inca, e fiquei um bocado de pé atrás. Mas nessa noite e nos dias seguintes assistimos a inúmeras demonstrações de cuidado e atenção que equilibraram a simplicidade e alguma rudeza daquele camponês chachapoya recomendado pela agência, que nos guiou pelo meio da selva e nos mostrou tesouros naturais quase inacessíveis, nos contou muitas histórias e aventuras, e na verdade respeitou-nos sempre e tratou-nos bem.

Enquanto fervia a sopa ao lume eu e a Claire estávamos maravilhadas a apreciar o céu estrelado. Tal como em Chavín umas noites antes, havia tantas estrelas que quase não se via um pedaço de escuridão, e a total ausência de luz nas imediações próximas e longínquas daquele vale aumentava-as, tão grandes e luminosas que pareciam a ponto de cair do céu. Vimos inúmeras cadentes a atravessarem a abóboda celeste, e de vez em quando ouvíamos uma vaquinha a mugir ali próximo. Não fosse o frio e teríamos ficado ali fora muito tempo. Mas entretanto o jantar estava pronto e comemos tudo o que havia, às luz das velas e ao som das histórias do Ronald, que nos contou como sobreviveu trinta e sete dias na selva quando estava no exército e o seu grupo se separou para fugir a uma emboscada dos narcotraficantes na selva de Ayacucho. Tinha dezanove anos. Sobreviveu porque desde miúdo o avô lhe ensinou a pescar, a fazer fogo com madeira e a orientar-se na floresta. Era uma história incrível e impressionante, digna de filme, e naquela noite eu decidi duas coisas: não duvidar nem pôr em causa o conhecimento do nosso guia, e não me queixar durante o caminho. Dores de pernas ou de costas não se compararíam nunca ao que ele teria passado nesses trinta e sete dias, e eu não queria que olhassem para mim como uma florzinha de estufa.

Na manhã seguinte acordámos ao som de mungidos e ao cheiro de um pequeno-almoço peculiar: chá de folhas de coca, café instantâneo, pão com pêra abacate e caldo de truta cozida. Arrumámos as mohilas, deixámos tudo mais limpo do que encontrámos e partimos para o nosso segundo dia de tour, primeiro de caminhada. Tínhamos de fazer dezasseis quilómetros atravessando todo o vale Huaylla Belen, subindo as montanhas em frente, embrenhando-nos na selva e passando por ruínas chachapoyas para chegar à aldeia onde dormiríamos na noite seguinte. O ritmo de caminhada era acelerado e várias vezes perdemos de vista o Ronald à nossa frente. Tínhamos de lhe pedir para esperar quando queríamos beber água ou “ir à casa de banho”, basicamente aquele rapaz era muito desenrascado mas não tinha muita sensibilidade para turistas, até as nossas piadas começarem a sortir efeito e no final do dia já estar mais atento às nossas necessidades de miúdas da cidade.

A região de Chachapoyas é um misto muito específico entre selva e serra que faz com que dois lados da mesma montanha sejam totalmente opostos em vegetação. Assim, durante a caminhada desse dia alternámos entre vertentes escarpadas e despidas e encostas cobertas de mato, subimos e descemos seguindo o antigo caminho inca utilizado até há três anos atrás por homens e cavalos para o transporte de café e madeira, almoçámos pão, queijo e fruta no topo de uma colina com vista para as montanhas verdejantes envoltas em neblina na sua aura misteriosa. Mais uma vez me senti no Senhor dos Anéis, mas graças a Deus não tínhamos orcs no nosso encalço. Tivémos bastante sorte com o tempo, não havia sol nem calor mas também nunca choveu. As subidas eram difíceis e recitei mentalmente os conselhos do Javier e do Edgar durante o Caminho Inca, e não voltei a precisar da drunfadinha de oxigénio. Desbravámos mato para seguir o trilho e visitar as ruínas, e eu sentia-me como o Hiram Bingham à procura de Machu Pichu ou o Indiana Jones na selva azteca. Não vimos um único ser humano durante todo o dia, aumentando a sensação de termos aquelas maravilhas naturais só para nós.

Chegámos à aldeia de Congón, um amontoado de cerca de vinte casas junto à estrada, seis horas depois da partida e tão cansadas que nem conseguíamos falar. Ficámos alojadas na casa de uma senhora que aluga quartos para os caminhantes destes trekkings e inclui o jantar e o pequeno-almoço. Havia várias crianças ali perto que ficaram alerta com a nossa chegada e foram-se juntado para nos observar enquanto íamos e vínhamos da casa de banho, mudávamos de roupa e nos sentávamos a vê-las jogar vóley. Aproximavam-se tímidas mas curiosas e com o passar das horas começaram a responder às nossas perguntas e a perguntarem-nos coisas também. Demos uma volta pela aldeia (literalmente cinco minutos para lá e mais cinco para cá), dividimos uma cerveja na varanda da casa com vista para a selva, fomos assistir ao jogo de futebol dos rapazes (e questionávamo-nos como o Ronald conseguia correr atrás da bola depois daquele dia de caminhada) e voltámos para o jantar. Fomos dormir pouco depois, creio que eram oito da noite, não sem antes passar revista ao quarto e travar algumas batalhas mortais com os insectos rastejantes e voadores que lá queriam dormir conosco.

No valor pago por dia para este tour estão incluídas todas as despesas de alojamento, alimentação e o bilhete de entrada em Kuelap no último dia, bem como um plafon de seguro para aluguer de um cavalo no caso de haver algum acidente e o caminhante já não possa caminhar, já que estes trilhos não são acessíveis a viaturas. Mas só em caso de acidente. Se os turistas desejarem incluir um cavalo a certa altura do trekking, isso terá de ser pago à parte. Para o dia seguinte estavam previstos trinta e um quilómetros de caminhada, do quais vinte seriam a subir até aos quatro mil metros de altura. Seriam cerca de cinco horas, e inevitavelmente lembrei-me do Caminho Inca, de Warmiwañusca e da minha experiência de quase morte. Mas aqui não havia garrafinha de oxigénio, pelo que eu andei todo o dia anterior a mentalizar-me para a experiência e a avisar o Ronald que o meu ritmo de subida seria muito, mas mesmo muito lento. À chegada a Congón ele tinha-nos dito que a caminhada desse dia tinha corrido muito bem, não diminuindo o nosso receio para o dia seguinte mas encorajando a nossa determinação. E então ele surpreendeu-nos com a notícia de que teríamos cavalos para a primeira parte do caminho, precisamente as cinco horas de subida até ao topo da montanha. Tinha negociado com a agência dizendo que uma de nós estava aflita dos joelhos e a outra tinha dificuldades de respiração, o que não foi verdade nesse dia mas teria certamente sido no seguinte se não tivéssemos os cavalos. E se por um lado eu queria fazer todo o trilho a pé como uma verdadeira caminhante, por outro lado o receio da altitude e do cansaço não me deixou ser temerária. E andar tantas horas a cavalo pelo meio da selva seria uma experiência nova e excitante, e sem custos acrescidos.

Saímos assim de Congón no sábado três de julho às oito da manhã, montadas no Rafa e no Amaral que nós carinhosamente baptizámos, enquanto o dono dos cavalos e o Ronald seguiam a pé ao nosso lado, cada um deles guiando um dos bichotes. Eu já tinha montado duas vezes em passeios campestres de cerca de uma hora no Gerês e em Cuzco, portanto estar em cima de um cavalo não era uma novidade total para mim. Mas o nível de exigência agora era completamente diferente: o caminho era extremamente difícil e em mau estado de conservação, com pedregulhos enormes no meio que tinham de ser contornados, subidas íngremes, descidas a pique repletas de cascalho escorregadio e poças de lama onde os cavalos se enterravam até aos joelhos. Tudo isto envolto em mato mais ou menos denso, com zonas quase totalmente desimpedidas e outras em que tínhamos de nos encostar aos cavalos para passar por baixo dos arbustos. Houve alturas em que o trilho era tão estreito e o precipício tão próximo que eu tive a certeza de que se o cavalo escorregasse naquele momento seria a última vez que me víam. Eu tentava minimizar o esforço do Amaral inclinando-me para a frente e para trás consoante as subidas e descidas, mas isso não evitou o cansaço extremo e a respiração ofegante do meu amigo, que por várias vezes tremeu das pernas e resvalou pregando-me sustos de morte mas sem nenhuma consequência. Eu falava com ele em espanhol, encorajava-o a prosseguir e agradecia-lhe constantemente, na certeza de que de alguma forma a minha energia mental haveria de lhe chegar.

Andar a cavalo parece muito giro nos filmes mas não é nada fácil. Estamos a um metro e meio do chão, doem os joelhos e o rabo, e quando o cavalo passa a trote é uma tremedeira total por mais que se aperte as pernas contra a barriga do animal, e dói tudo. Portanto eu nem queria imaginar o que seria andar a galope desenfreado pela pradaria como os cowboys nos westerns. Para cada descida eu já sabia que se seguia uma corrida rápida para perder o balanço, agarrava-me com força e fechava os olhos. O cavalo segue o seu caminho por onde lhe dá mais jeito não pensando na carga que leva em cima, sejam sacas de café ou pessoas. Numa das descidas mais íngremes largou a trote e eu fui contra tudo o que era arbustos e silvas acima do lombo dele durante uma dezena de metros. Quando travou a fundo ao princípio de outra subida o balanço lançou-me de fronha contra a sua cabeça e os meus óculos voaram. Atrás vinha o Ronald a correr esbaforido para o tentar agarrar e quando chegou ao pé de mim com ar preocupado e os meus óculos na mão eu alternava entre lágrimas e riso. Apanhei um caguefe daqueles, tinha arranhões na cara e nas mãos e na verdade estava mesmo assustada. Mas simultaneamente a situação era cómica e não tinha acontecido nada de grave, porque felizmente não houve nenhum tronco deitado no meu caminho nem eu tinha caído do cavalo. E a partir dali preparei-me muito melhor para as descidas, pondo um braço à frente da cara e agarrando-me com a outra mão, as pernas e muita força ao Amaral. Nunca as expressões “cheirar a cavalo” e “suar que nem um cavalo” me fizeram tanto sentido como nesse dia.

Nas zonas mais amenas do caminho permitia-me diminuir a atenção e disfrutar da paisagem, sobretudo quando ganhei mais confiança e comecei a perceber como podia acompanhar o ritmo do cavalo facilitando a caminhada dele e a minha. Sentia-me uma verdadeira amazona no meio da selva montanhosa. A neblina continuava e a vegetação ia diminuindo progressivamente à medida que subíamos. Chegámos a um lugar chamado Lanche por volta das onze e meia da manhã, onde parámos para visitar umas ruínas. Descemos dos cavalos e caminhámos, não sem esforço depois de várias horas com as pernas meio dobradas, cerca de meia hora no meio de mato denso para chegar a um conjunto de paredes circulares de pedra que tinha sido uma cidade chachapoya, abandonada com a chegada dos Incas, agora cobertas de vegetação. Estes inúmeros conjuntos arqueológicos ainda não estão estudados, conservados nem facilitados ao público, diminuindo drasticamente a qualidade da visita e o entendimento dos mesmos pelos visitantes. Simultaneamente, encontram-se num estado tão natural que não nos sentimos turistas mas sim exploradores, aumentando exponencialmente a adrenalina e o impacto da visita. Neste sentido, este trekking foi mais especial do que o Caminho Inca, e mais difícil.

Perto do lugar onde tínhamos deixado os cavalos há uma casa onde vive um casal de velhotes isolado do mundo e dedicado à agricultura e às suas vaquinhas. É aqui que se almoça no terceiro dia do tour, e eu questionava-me onde é que eles iam arranjar os géneros alimentares visto estarem tão longe de qualquer cidade e acessíveis apenas a cavalo ou a pé. É incrível ver pessoas a viverem nesta simplicidade. A casa de banho é uma latrina de madeira como as que tínhamos nos acampamentos de escuteiros, e eu considerei-a um upgrade em relação ao “wc natural” de que tinha usufruído várias vezes naqueles dias. Os peruanos das montanhas são simples nos hábitos e nos costumes e isso vê-se em variadíssimas situações, como não facultarem talheres completos nas tasquinhas porque normalmente só usam um garfo ou uma colher, tomarem banho de água fria sem dificuldade ou não se afastarem para “ir à casa de banho” no mato, sobretudo se forem rapazes. Eu já sabia que convinha caminhar um bocado quando precisava de fazer xixi porque o Ronald e o rapaz dono dos cavalos (do qual também não recordo o nome) ficavam ali na conversa sem pensarem que nós não éramos homens como eles e não bastava virar para o outro lado e já está.

Esse almoço no cimo do monte envolto em neblina foi bastante rápido mas nutritivo e saboroso, estávamos esfomeados e cansados e não tínhamos muito tempo, havia que chegar ao topo mais alto até às duas da tarde para o rapaz poder voltar com os cavalos para Congón antes do anoitecer. Quando montámos de novo e nos fizémos ao trilho começou a chovinhar e assim continuou durante bastante tempo. A partir dali já não havia árvores nem arbustos altos que me arranhassem a cara, mas o caminho tornou-se ainda mais íngreme e foi o troço mais exigente e lento de todo o dia. Conseguimos chegar lá cima a tempo, e a paisagem era impressionante. Eu quase caí quando desci do Amaral, os meus joelhos gritavam e as pernas não aguentavam o meu peso, e demorei algum tempo até recuperar totalmente as minhas faculdades motoras. Estava nevoeiro e um frio de rachar naquela altitude e eu tenho perfeita noção que se tivéssemos subido a pé ainda estaria agora a tentar lá chegar. Foi uma experiência incrível.

Ali nos despedimos dos nossos amigos de quatro patas e do seu dono e prosseguimos a pé. Faltavam onze quilómetros a descer pelas montanhas até Choctamal, onde dormiríamos nessa noite. Apesar das pernas tremeram, os joelhos doerem e eu temer pelas minhas rótulas, a descida foi amena e fomos na conversa até lá baixo. O Ronald tinha muitas coisas para contar e inspirava-me aquela ternura familiar que me inspiram todos os peruanos com as suas qualidades e defeitos gerais enquanto povo, e particulares enquanto indivíduos. Não se os pode levar demasiado a sério. 
De novo a vegetação foi aumentando progressivamente. Chegámos à aldeia a meio da tarde e tivémos um choque com a civilização: um restaurante, um quarto com camas acolhedoras, um duche de água quente depois de três dias! O negócio era gerido por um casal simpático com um filho de treze anos e uma avó velhinha e por ali ficámos o resto da tarde na conversa e a descansar. Nem tivémos energia para ir dar uma volta pelo povoado. Não houve mais clientes para jantar pelo que ficámos com o restaurante só para nós. Era sábado à noite, eu e a Claire estávamos nostálgicas ao pensar nos nossos amigos em Ayacucho que estaríam certamente em preparações para ir dançar ao Maxx’oh, e então o dono foi buscar uma aparelhagem de som bastante respeitável e cd’s de música ayacuchana e montámos ali um salão de baile muito peculiar. Eu não conhecia aquelas pessoas de lado nenhum, o Ronald conhecia há dois dias e a Claire há pouco mais de uma semana, mas a simplicidade das situações é o que me faz sentir tão em casa em qualquer lugar do Perú. Dançámos e cantámos e divertimo-nos imenso, e eu tentava ensinar alguns passos ao Carlos (o filho) apesar de ele não ter o mínimo sentido de ritmo. A certa altura entre o cansaço, a emoção e um copo de Chuchuwasi, um licor típico da selva feito a partir da casca de uma árvore, o sono levou a melhor e caí na cama refonfunhadamente. Foi uma última noite do trekking festejada como deve ser, e eu estava mesmo muito feliz. Feliz pela caminhada, pelas paisagens maravilhosas, pela companhia de viagem, pelo Perú e pela Vida.

Na manhã de domingo quatro de julho amanhecemos com algum cansaço pelos festejos da noite anterior e depois do pequeno-almoço fomos integrados num grupo de turistas para ir de carrinha às ruínas de Kuelap, a quarenta minutos de Choctamal. Kuelap é uma fortaleza de pedra impressionante no topo de uma ravina a três mil metros de altitude (diz-se que acumula a maior quantidade de pedra num edifício pré-colombiano em toda a América Latina), era a capital administrativa e religiosa do povo Chachapoya até este ter sido dominado pelos Incas, e chamam-lhe o Machu Pichu do norte do Perú. É o único complexo arqueológico desta região que está decentemente conservado e aberto ao público, ainda que se estima que apenas três porcento esteja estudado até agora. O impacto de chegar ali de carro depois de três dias de trekking foi drasticamente reduzido comparativamente a chegar lá a pé, mas não existe nenhum trilho fora da estrada e pelas montanhas, reduzindo o interesse da caminhada, e a distância de Choctamal implicaria esticar o tour para mais um dia. Quando coloquei esta questão primordial à Christell, na agência,  foram estes os argumentos que ela me apresentou e que não me convenceram muito. Na minha opinião isto foi uma perda enorme de interesse, sendo Kuelap o ponto alto e o objectivo de todo aquele passeio tortuoso e sofrido, ainda que olhando para trás confirmo o que já tinha sentido ao chegar a Machu Pichu: quando passa a emoção da chegada e o impacto daquela primeira visão que nos tira o fôlego, as mais intensas recordações que ficam são do caminho, não do lugar para onde vamos. E em Kuelap, tal como em Machu Pichu, a visita guiada pelo Ronald foi interessante mas não tão emocionante, e enquanto eu me esforçava para reter na memória aquelas muralhas pedregosas imponentes e dominadoras da paisagem em redor, na verdade não conseguia fugir das imagens mentais dos dias anteriores: pescar trutas, descubrir ruínas cobertas de mato, trepar troncos caídos, rodear pedregulhos, agarrar-me ao Amaral, borboletas gigantes, montanhas verdejantes envoltas em neblina. Tal como no Caminho Inca.

Caminho para Kuelap. Fotos da Claire.

A ravina de Kuelap vista ao longe.
A muralha.

 A entrada principal





Uma (muito) pequena família de quatro dias: Claire, Ronald e eu.

Regressámos a Choctamal para um almoço tardio, despedimo-nos do Carlitos, dos seus pais e da avó e regressámos a Chachapoyas na carrinha com o mesmo grupo de turistas. Observei a paisagem já com nostalgia. Mais uma vez constatei que também aqui os Andes são diferentes de si mesmos nas outras regiões onde existem. Aqui na província de Amazonas os vales são estreitos mas planos e todos serpenteados por rios que alagam as suas margens, contribuindo para a maior produção de arroz de todo o Perú e recordando-me as várzeas do Ribatejo, mas com muralhas verticais e rochosas em redor. A vegetação alterna drasticamente como já vos contei acima, entre mantos de árvores, zonas de arbustos ralos e escarpas completamente despidas.




Chegámos a Chachapoyas ao final do dia e voltámos ao hostel do Sr. Ricardo. Tivémos preguiça para tomar banho, e depois de um chá de folhas de coca saímos para comer uma pizza num bar gerido por um rapaz do País Basco, tendo encontrado pelo caminho o Ronald com o irmão mais novo que também é guia e acabava de regressar com um casal de franceses do mesmo trekking que nós tínhamos feito. Apesar de ser uma despedida provavelmente para a vida, em viagem conhecemos pessoas com quem ganhamos familiaridade por um par de dias e depois o mais certo é nunca mais voltarmos a encontrar-nos, foi tudo muito rápido e nem deu tempo para lamechices. E se o verdadeiro viajante tem a mente aberta para os “olás” e o espírito tranquilo para os “adeuses”, eu ainda fico com o coração apertado nas despedidas. Estas experiências de caminhar vários dias isolada do mundo com um grupo pequeno de pessoas que inevitavelmente se tornam uma pequena família tem tanto de intenso como de efémero, e às vezes pergunto-me como gerir todas estas pessoas que eu vou conhecendo e ganhando afecto e perdendo depois. Fazem todas parte da minha vida, das minhas experiências e recordações, do meu Ser, e ficarão todas gravadas em mim desde a minha infância à minha velhice.

Nessa noite dormimos cedo e no dia seguinte tomámos um pequeno-almoço abençoado num café catita perto da Plaza de Armas, antes de eu apanhar o autocarro da Moviltours para a viagem de vinte e três horas de regresso a Lima, e a partir dali a Claire seguia sozinha pelo Perú abaixo por mais três semanas antes de regressar a França. Foi a despedida final, mais dois corações apertadinhos e lágrimas no canto do olho. Obrigada PachaMama pela companheira de viagem que me providenciaste generosa e inesperadamente (e que curiosamente vive perto dos meus primos na Normandia), este não foi um adeus para a vida porque a probabilidade de nos revermos até é grande. Mas o fim de uma viagem é sempre o fim difícil de um tempo único e irrepetível, e apesar de eu ter de regressar a Lima por um bom motivo – a minha operação aos olhos – não tinha vontade nenhuma de deixar de viajar, e ainda lá estaria agora não fosse pelos valores familiares que mais alto se levantam.

De facto, o que eu quero é viajar.