Chegámos a Cusco às seis da
manhã e foi uma emoção estar na capital do antigo império inca. O nosso
objectivo era o Lago Titicaca, em cuja rota Cusco foi apenas uma paragem
técnica, e por isso não fizémos os expectáveis passeios pelo Vale Sagrado e não
fomos a Machu Pichu (para surpresa e admiração dos inúmeros operadores
turísticos que nos interpelavam na Plaza de Armas). Mas as dezassete horas que
passámos nesta bela cidade (a mais bela do Perú?) foram inesquecíveis.
Passeámos pelas ruazinhas íngremes e estreitas da época inca, ao estilo tão surpreendentemente
familiar das cidades medievais europeias, descubrimos as praças e os mercados,
as ruínas incas sob os edifícios coloniais, vimos um jogo de basketball
feminino, vimos lamas na cidade. Fomos de passeio a cavalo pelas montanhas, e
jantámos (às cinco da tarde) numa típica tasca peruana descoberta por acaso, e
sem turistas! E fugimos da chuva para assitir, confortavelmente sentadas e quentinhas,
a um concurso de danças tradicionais da universidade local. Cusco é turística,
talvez até demais, mas tão amigável e “user friendly” que foi com pena que a
deixámos para apanhar o autocarro nocturno para Puno, na margem do lago.
Segunda noite consecutiva passada em bus.
Cusco - Plaza de Armas
Um lama chamado Pablito
Em total contraste, Puno é uma
cidade portuária feia. Nem a Plaza de Armas atrai. O interesse de chegar aqui é
chegar ao Titicaca. Com uma sorte de minutos tivémos tempo para um
pequeno-almoço apressado no porto antes de apanharmos o barco para as ilhas. A
nossa tentativa de fugir aos tours organizados foi totalmente frustada, porque
os percursos turísticos no lado peruano do Lago Titicaca estão muito
condicionados e neste período de época baixa não há barcos suficientes para
irmos por nossa conta. Assim, sem querer, vimo-nos integradas numa excursão com
direito a guia bilingue (o “nosso amigo” Hermógenes), cuja primeira paragem foi
nas ilhas flutuantes dos Uros.
Os Uros são uma comunidade
Aymara que vive em ilhas artificiais feitas de juncos, a uma hora de Puno. Vivem
há seculos quase totalmente isolados da civilização, conservam o seu modo de
vida ancestral e mostram aos visitantes apenas uma pequena parte da sua
comunidade. Os juncos que crescem nos baixios do lago são a base da sua
sobrevivência, pois utilizam-no para construir as casas, os barcos e as
próprias ilhas, e também para comer (mas na verdade não tem nenhum sabor). Vivem
da pesca, da venda de artesanato e do turismo, para o qual estão tão orientados
que se torna decepcionante. Estivémos nestas ilhas apenas duas horas, visitámos
apenas duas das inúmeras ilhas que compõe a comunidade, e vimos o que eles nos
queriam mostrar, não o que individualmente nos poderia apetecer ver. Valeu a
pena pela paisagem deslumbrante do lago, pela curiosidade e surpresa de
descubrir pessoas com um estilo de vida tão antigo e arcaico, valeu a pena pela
diferença. Mas foi uma desilusão para as minhas expectativas.
A vida é feita de coincidências (há quem lhes chame
destino), e quando viajamos aumentamos exponencialmente as probabilidades de
acontecerem coisas. Coisas boas e claro, coisas menos boas. Mas acontecem
muitas coisas quando viajamos, simplesmente porque levantamos o nosso rabiosque
preguiçoso da nossa vida confortável e nos pomos a mexer. E quando nos mexemos,
tudo à nossa volta se mexe também. A nossa integração involuntária na tour
organizada acabou por ter consequências surpreendentes. Conhecemos a Julia e o
Miguel, um casal de designers gráficos espanhóis da nossa idade que fugiu da
crise e anda a viajar pela América Latina há cinco meses, em modo backpacker
low-cost, parando para trabalhar onde encontram alguém que precise de uma
página de internet ou de algum trabalho de publicidade, em troca de alojamento
e comida (trabalharam em Cuba, no Ecuador, e estão neste momento a trabalhar na
Bolívia). E com eles estava o Alejandro, irmão da Julia, jornalista
recentemente desempregado, que também fugiu da crise e veio ter com eles para
viajar um mês pelo Perú e pela Bolívia. Quando começámos os cinco na conversa
durante a viagem de barco não podíamos imaginar a empatia brutal que íamos ter,
nem que íamos querer passar juntos os dias seguintes, como uma pequena família
feliz.
Dos Uros seguimos para a ilha Amantaní, a quarenta e
cinco kilómetros de Puno (três horas de barco) e durante a viagem descubrimos
com algum desconcerto que também aí a nossa permanência já estava bastante organizada.
O sistema de alojamento é familiar, ou seja, em casa das pessoas que vivem na
ilha, inclui dormida e três refeições, e funciona por rotação, de modo que
todas as famílias recebam turistas. A atribuição dos visitantes às famílias é
feita previamente, durante a viagem de barco. Até aqui tudo bem. Mas o tempo de
permanência na ilha é de uma tarde e uma noite (creio que em época alta é
possível ficar mais noites), porque no dia seguinte o barco segue para Taquile,
a outra ilha visitável do lago. E nessa ilha iríamos ficar apenas três horas,
porque só há um horário por dia de regresso a Puno. Ou seja, quase só faltava
dizerem-nos quando podíamos respirar e fazer xixi. Tudo o resto estava bastante
condicionado. A esta organização nós chamávamos-lhe carinhosamente “O Plano”.
Chegámos a Amantaní a meio do dia e fomos encaminhados
os cinco para a casa da Sra. Clara. Eu e a Celsa íamos mortinhas por uma
banhoca, mas claramente “o plano” não era esse. Na ilha Amantaní as pessoas não
têm água canalizada em casa, muito menos água quente, as sanitas funcionam a
balde e os dentes lavam-se com água de garrafa. Mais um dia sem duche.
Salvavam-nos temporariamente as toalhitas dodot e as infindáveis camadas de
roupa sobrepostas, por causa do frio. Nunca tive tanto frio na minha vida, nem
nos acampamentos de escuteiros.
As refeições incluídas no alojamento são constituídas
pela comida habitual das pessoas na ilha. E na ilha não há muita variedade. O
almoço foi batatas, cenouras, arroz e queijo de vaca (carne é luxo), com chá de
folhas de coca e de muña (uma plantinha de folhas pequeninas que cresce nas
alturas e cheira a menta). E o jantar foi a mesma coisa, antecedido de uma sopa
quentinha de…batatas, cenouras e arroz. Pois claro :) Durante a tarde “o plano”
era subir às colinas da ilha. Em vão tentámos rebelar-nos, não ser mais cinco
ovelhas no rebanho, e fazer outra coisa qualquer só para contrariar, mas não
havia mais nada para fazer na ilha e, na verdade, a subida à colina PachaMama (Terra
Mãe) revelou-se uma das caminhadas mais bonitas da nossa viagem. Eu parecia um
velhote asmático, pois padeci da altura com muita intensidade e sentia que o
meu corpo não me correspondia. O Lago Titicaca está a três mil e oitocentos
metros acima do nível do mar, e a subida a PachaMama são p’raí uns duzentos
metros, pelo que os meus pulmões suplicavam por oxigénio com uma aflição que eu
não esperava. Era a última do grupo! Para uma escuteira sentia-me bastante
envergonhada, mas decidi disfarçar a lentidão com paragens para fotografar.
E o esforço valeu muito a pena. A ilha está coberta de
terraços cultivados à mão e salpicados de ovelhas e vaquinhas. As pessoas vivem
de um modo autênticamente rural. No topo da colina tínhamos vista a trezentos e
sessenta graus para o lago e as ilhas circundantes. E apesar de estar muito
vento e um “frío de cojones”, como dizem os meus amigos, ficámos por ali
sentados em silêncio durante um bom bocado simplesmente a observar.
Simplesmente a ser, a estar, e a apreciar a paisagem, a boa companhia e a sorte
que tínhamos em poder estar ali.
Lago Titicaca - Ilha Amantaní
Subindo à colina PachaMama (Mãe Terra)
Alejandro, Julia, Celsa, Miguel e eu no cimo da colina. Uma pequena família feliz :)
De regresso à aldeia parámos na praça central para
algo que todos estávamos desejando intensamente há meses e que é típicamente
mediterrânico, mas nada latino: umas cervejas na esplanada ao fim da tarde. O
único café da aldeia não tinha esplanada (esse costume os colonizadores não
conseguiram transmitir aos latinos, muito menos nesta ilha gelada) mas nós
pedimos para trazer uma mesa cá para fora e ficámos na conversa, a falar de
Espanha e de Portugal, da crise económica e da crise existencial, das
alternativas e das possibilidades da vida, até ser de noite e estarmos
congelados. Em Amantaní não há iluminação pública, e a Mami Clara tinha-nos
dito pelo menos cinco vezes para voltarmos antes de anoitecer senão íamos
perder-nos. E também porque ali janta-se às sete. Esse era “o plano”. Mas
distraímo-nos com as cervejas e apesar de bastante cedo já era bem escurinho
quando regressámos, contando as casas, os muros, as ovelhas e os burrinhos para
nos orientarmos. Nessa noite deitámo-nos a horas de bébé e eu dormi com toda a
minha roupa vestida, dentro do saco-cama e debaixo das várias mantas da cama.
Acordei exactamente na mesma posição em que adormeci.
No dia seguinte a viagem de barco para Taquile durou
uma hora e a visita à ilha decorreu sem grande histórias. É uma ilha
completamente rural como Amantaní, e as pessoas também falam Quechua (a língua
dos incas) entre si, e só usam o espanhol para os turistas. A única aldeia da
ilha é amorosa, o mercado ocupa apenas meia rua e na praça central as vistas do
lago são fabulosas. Mas não ficámos tempo suficiente para conhecer, apenas o
tempo para ver, e ver é muito pouco quando se está perante uma realidade
diferente. Ver é superficial, e o que eu sinto da visita a estas três ilhas no
lado peruano do Lago Titicaca é que foi muito superficial. Mas foi a visita
possível.
Regressámos a Puno a meio da tarde, eu e a Celsa íamos
em quatro dias sem tomar banho e já não pensávamos noutra coisa. Graças aos
nossos amigos fomos direitinhas, sem mais procuras, a um hostel onde eles
tinham estado uns dias antes de nos conhecermos. Eles os três seguiram nessa
tarde para Copacabana, na margem boliviana do lago, e nós tínhamos planeado ir
para lá no dia seguinte, porque daí saem os barcos para a Ilha do Sol, e então
combinámos encontrar-nos na ilha. Contudo, sem telemóveis nem certezas de nada,
despedimo-nos calorosamente com a esperança de nos voltarmos a encontrar mas
sem nenhuma garantia de que isso fosse acontecer. E a noite em Puno foi de um
contraste extraordinário, porque da casa de adobe na ilha rural onde
amanhecemos nesse mesmo dia, passámos para um hostel com luz e ÁGUA QUENTE,
fomos ver as montras ao centro comercial que havia ali ao lado e adormecemos a
ver séries na televisão do quarto. Priceless!
Atravessar a fronteira do Perú com a Bolívia na rota
de Copacabana é uma experiência. A viagem desde Puno, na manhã seguinte, tinha
sido deslumbrante, percorrendo a margem ocidental do lago ao longo de uma
planície imensa de campos cultivados, casas de adobe e muitas vacas, ovelhas e
burrinhos. E a fronteira passa-se a pé. Por isso descemos do bus para
coleccionar os nossos carimbos de autorização de saída no passaporte e trocar
dinheiro (duas experiências há muito esquecidas graças à União Europeia) e
percorremos caminhando esses duzentos metros de “terra de ninguém”. Eu estava
emocionada. Estou na BOLÍVIA! E o meu passaporte está marcado. Depois voltámos
a entrar no bus para os últimos kilómetros até Copacabana.
Copacabana. Ai, Copacabana. Foi amor à primeira vista.
O centro é uma rua cheia de bares e restaurantes que desce direitinha ao lago.
Parece a Rua dos Pescadores na Costa da Caparica. E o ambiente é muito
parecido, assim com um espírito veraneante e festivo. A maior diferença?
Copacabana é um destino turístico completamente hippie. É esse o ambiente.
Música reaggae em todos os bares, grupos de backpackers à procura de um hostel
ou a tomar uma cerveja numa esplanada, rastas e muito “peace and love”. Ficámos
a duas sideradas e já não queríamos sair dali. E só sairíamos para apanhar o
barco para a Ilha do Sol, que ainda é mais hippie e muita gente nos tinha
contado maravilhas. Pois estávamos nós numa esplanada com um sol maravilhoso de
meio-dia, a decidir se ir para a parte sul ou norte da Ilha do Sol, e perguntando-nos
em qual das partes estaríam os nossos amigos (pois em teoria já lá teriam
chegado) quando os vemos aos três, mochilonas às costas, a descer a rua! Foi uma
emoção! Foi um acaso muito feliz! Ou será que foi destino? :) Juntos apanhámos
o barco para a ilha e decidimos ir para a parte norte, que nos disseram ser
menos turística e mais natural. E os nossos planos de viagem começaram a mudar
aqui.
A Ilha do Sol é, de facto, muito natural. Conta a
lenda que foi aqui que o Deus Sol criou os primeiros Incas, Manco Capac e Mama
Ocllo, que deram origem ao império com capital em Cusco. Lendas à parte, esse é
um lugar com uma energia muito especial, os visitantes que lá chegam vão num
espírito muito particular e o ambiente que se vive é de um “peace and love”
altamente contagioso. De fogueiras à noite na praia e tudo. Durante grande
parte do dia não há água corrente, e a maioria dos hosteis são casas de adobe
sem tomadas eléctricas. Há casa de banho e tem chuveiro, mas com que água? E
com este frioooo? Deus me livre! Mais dois dias sem banho :) Ficámos alojados
no hostal PachaMama e ao final da tarde demos uma volta pela zona norte da
ilha. As vistas são de ficar sem fôlego. O lago é deslumbrante. Na praia há
vaquinhas e porquinhos e burrinhos, e as colinas estão cobertas de campos
cultivados e casinhas de adobe. Rodeada por tal natureza e em companhia tão
feliz, tive um momento de “consciência plena” (como lhe chama a Celsa em termos
técnicos de psicologia) na Ilha do Sol. E a nossa ideia de ficar só uma noite e
partir no dia seguinte para o sul da Bolívia em direcção ao Deserto de Sal de
Uyuni já se estava a desvanecer irreversivelmente. Queríamos ficar na ilha.
Queríamos passar mais tempo com os nossos amigos, que iam ficar lá três ou
quatro dias. Então decidimos ficar duas noites e depois logo se via o que
fazíamos com o resto da viagem. Estávamos precisamente a meio, nesta altura, e
foi nos dias em que fez dois meses que eu cheguei ao Perú.
Muita gente chegou à Ilha do Sol no dia seguinte por
ser o dia doze do mês doze do ano doze, e por ali ser um “lugar com uma energia
muito especial” (não sei quantas vezes ouvi esta expressão durante esses dois
dias), ideal para celebrar a data mística que marcava uma mudança de ciclo na
vida da Terra (exacto…). As celebrações do dia doze seriam apenas um prelúdio
da grande festança do dia vinte e um, o dia previsto pelos maias para o fim do
mundo (pois…). Para nós, este dia amanheceu nublado e chuvoso e decidimos
pensar no que fazer à volta de uma mesa de pequeno-almoço bem recheada. A ideia
era fazer uma pitoresca caminhada de três horas que atravessa a ilha e chegar à
comunidade no lado sul (esqueci-me de referir que na ilha não existem veículos
motorizados, à excepção de barcos). Quando parou de chover pusémo-nos a
caminho.
Foi um dejá-vu total dos meus tempos de escuteira. Atravessámos
florestas, subimos ravinas, descemos à praia, passámos por campos cultivados e
descampados despidos de vegetação, vimos os já habituais porquinhos, vaquinhas
e ovelhas, assistimos a um casamento na praça do povoado central, passámos um
frio de rachar e morremos de calor ao sol. Sempre com o lago em pano de fundo. Agradeço
aos meus sapatos de trekking comprados antes de vir para o Perú, que se
converteram nos meus companheiros de viagem mais fiéis. Às dozes horas e doze
minutos decidimos entrar no espírito místico do dia e fazer uma homenagem a
PachaMama, com um ritual improvisado de dança e sons em círculo durante um
minuto. Mais tarde eu iria sentir que a Mãe Terra havia recebido com agrado a
nossa homenagem e nos havia retribuído. Já vão perceber porquê.
O único problema da ilha do sol é o preço das coisas.
Para nós, europeus, estamos a falar de valores irrisórios, mas aqui tudo custa
o dobro em relação ao resto da Bolívia, e inclusive para passear na ilha e
atravessar as suas três comunidades é preciso pagar bilhete de entrada em cada
uma delas. Some-se isso à atitude pouco cordial dos bolivianos para com os
turistas, a quem vêm unicamente como “sacos de dinheiro” e partem do
pressuposto que são todos ricos por poderem viajar, e nós já estávamos um pouco
saturados de abrir os cordões à bolsa a cada instante. As nossas bolsas são
leves e têm de durar para muito tempo, pelo que qualquer tostão é dinheiro, por
mais pouco que seja. Pagámos para fazer a caminhada que atravessa a ilha, mas
quando chegámos à entrada da comunidade sul deparámo-nos com um casal de
autóctones muito arrogantes e presunçosos e depois de uma troca algo intensa de
galhardetes decidimos que não íamos pagar mais nada. Estamos a falar de um
valor de cinquenta cêntimos de euro. Mas também foi uma questão de orgulho. E
por isso fomos dar “uma ganda bolta” fora do trilho turístico, que nos custou
mais duas horas, atravessando mais campos cultivados que não era suposto
atravessarmos, e chegámos ao povoado sul pelo lado oposto da bilheteira. Pelo
sim pelo não decidimos fingir que éramos americanos e não entendíamos bem
espanhol, no caso de sermos interpelados por alguém que nos pedisse para
mostrar o bilhete que não tínhamos. E a nossa frase de guerra era “Oh my God,
quanta belleza” pronunciado à americana. Um fartote de riso.
O povoado da parte sul da Ilha do Sol é maior e mais
desenvolvido que o da zona norte, com uma pracinha com a sua igreja, muitas
casas e vários hosteis e restaurantes. Almoçámos às quatro da tarde debaixo de
um sol esplendoroso, mas ao longe sobre o lago víamos claramente um nuvem de
chuva intensa que se ia aproximando rapidamente da ilha. Muito rapidamente.
Numa questão de meia hora passámos de sol a tempestade e a nossa ideia de
voltar de barco para a zona norte foi involuntariamente abortada. O último ferry
já tinha passado há várias horas, a hipótese era pagar a algum pescador que nos
levasse no seu barco, mas com aquela borrasca ninguém ia lançar-se à água.
Começámos a interiorizar a inevitabilidade de regressar caminhando. Mas estava
a chover TORRENCIALMENTE. E só tínhamos duas horas de luz até ao pôr-do-sol (a
caminhada durava pelo menos três). E não tínhamos lanternas. Por uns minutos,
ficámos os cinco em silêncio a olhar lá para fora, entre o pânico e a
incredulidade, sem saber o que fazer.
Não havia alternativa. Então artilhámo-nos o melhor
possível com os nosso impermeáveis, gorros e cachecóis, atámos os sapatos com
força e perante o olhar incrédulo dos outros turistas que estavam no
restaurante, lançámo-nos à tarefa de regressar ao nosso hostel para dormir essa
noite. É-me difícil descrever essa aventura. Não há fotografias dessas horas.
Passou tudo muito depressa. Confesso que houve alturas em que tive medo, mas
olhava para os meus companheiros e sentia-me protegida. Ficámos ensopados até à
última camada de roupa pela tempestade que nos acompanhou. Fomos por atalhos
para cortar caminho e tentar chegar antes de anoitecer. Descemos uma ravina de
rocha tão alta que quando chegámos cá abaixo eu me assustei ao olhar para cima.
Atravessámos mais bosques e campos. E fomos desembocar à praia onde tínhamos
feito o ritual de homenagem a PachaMama nessa manhã. Obrigada!
O último troço do caminho foi feito quase a correr e
chegámos ao povoado norte com o último raio de lusco-fusco. Tempo total: duas
horas!! Estávamos exaustos mas eufóricos, e eu tinha vontade de correr e saltar
e parar as pessoas na rua para lhes contar o que tínhamos acabado de fazer.
Sentíamo-nos heróis (uma parvoíce, eu sei, mas foi uma descarga enorme de
adrenalina). Nessa noite, depois de vestir roupa lavada e quentinha (mas sem
banho, claro) acabámos à mesa do bar Inca Uta com um grupo de viajantes que não
conhecíamos, a contar histórias de viagens, a falar do fim do mundo e da
suposta visita de Manu Chao para um concerto ali na ilha no dia vinte e um. Não
cheguei a saber se esse concerto aconteceu, mas a Ilha do Sol é a ilha dos
rumores e muitas coisas ouvimos dizer durante os dois dias que lá estivémos e
que não se concretizaram. Acho que faz parte do seu misticismo, e uma parte de
mim podia habituar-se facilmente àquele ambiente.
Por esta altura já tínhamos decidido o próximo passo
da nossa viagem. Os espanhóis falaram-nos da cidade de Coroico, a três horas de
La Paz e no meio da selva boliviana, e como tínhamos ainda cinco dias
disponíveis (que já não chegavam para ir ao Salar de Uyuni, demasiado a sul)
decidimos ir para lá no dia seguinte. E conseguimos convencê-los a alterar
também os seus planos de viagem, pelo que ficariam apenas mais um dia na Ilha
do Sol e viriam ter conosco a Coroico na nossa última noite lá. Combinámos
jantar juntos. Seria a nossa despedida final. Então despedimo-nos mais uma vez temporariamente
na expectativa do reencontro, desta vez com combinações mais concretas mas
sempre com uma grande dose de incerteza, pois os planos podiam sair furados (em
viagem tudo pode acontecer), e estando impossibilitados de comunicar havia um
grande risco de não nos reencontrarmos.
Da Ilha do Sol a Coroico foi um dia inteiro de viagem.
Fomos de barco para Copacabana e daí apanhámos um combi para La Paz. Esta rota
passa pelo Estreito de Tuiquina, uma zona do Lago Titicaca que se atravessa de
ferry, incluindo os carros, os combis e até os autocarros grandes. É uma visão
muito engraçada.
Chegámos a La Paz à hora de almoço e foi um choque. É
indescritível. Uma cidade enorme enclausurada num vale, apertada entre colinas
cobertas de favelas. Um caos. Muuuuuuito pior que Lima. Estivémos aqui apenas o
tempo necessário para passar de um combi ao outro (demorámos um hora a
atravessar a cidade de táxi, por causa do trânsito, e nesse percurso não vi uma
única coisa bonita) e a recordação que tenho é de sufoco e claustrofobia. Foi
um alívio apanhar o combi para Coroico, apesar de serem mais três horas de
viagem apertada entre bolivianos.
A longo do caminho fomos tirando sucessivas camadas de
roupa e Coroico recebeu-nos com uma noite quente e húmida a recordar noites
boas de Lisboa em Julho. Ai, Coroico. Que júbilo chegar aqui depois de nove
horas de viagem e do frio do lago. É uma típica cidade veraneante que se enche
ao fim de semana, com a particularidade de não ter mar mas ser no meio de
montanhas cobertas de selva. E como agora é época baixa não estava invadida de
turistas. Nessa noite adormecemos outra vez a horas de bébé, depois do tão
desejado duche de água quente, num hostel aberto ao público mas ainda em
construção.
No dia seguinte procurámos um hostel para os nossos
amigos que iam supostamente chegar nessa noite (porque o nosso hostel só tinha
quatro quartos habitáveis e estava cheio ahahah!) e apesar de estar a chover
decidimos fazer o passeio turístico até umas cascatas que há ali a duas horas
da cidade. É um passeio lindíssimo pela estrada de terra batida que vai
contornando as montanhas cobertas de vegetação densa. Pode-se ir de combi, mas
as nossas pernas gritavam por movimento depois da viagem do dia anterior. Ao
longo do caminho pudémos ver e ouvir várias espécies de pássaros, muitas bananeiras
e mangueiros, e o ar húmido foi uma benção para os nossos pulmões e a nossa
pele queimada do frio. A estrada passa por várias aldeiazitas encavalitadas no
meio das árvores e é incrível descubrir que há gente a viver naqueles lugares.
Foi nesta caminhada que vivemos o único momento de
risco da nossa viagem. Démos conta, a certa altura, que estávamos a ser
seguidas por um homem. Não nos chamou a atenção antes porque ao longo do
caminho havia várias pessoas caminhando, tanto turistas como autóctones. Mas
tornou-se suspeito quando parou ao mesmo tempo que nós parámos, junto ao uma
mercearia no meio do nada, e vendo que o olhávamos fixamente virou-se e pôs-se
a observar a paisagem. E depois voltou para trás e subiu o morro que a estrada
contornava, vindo outra vez na nossa direcção pelo meio da vegetação. Nesse
momento passou-me um calafrio pela barriga e tive a clara noção de que ele nos
ia assaltar mais à frente onde a estrada ficava deserta no meio da selva e não
havia ninguém naquele momento. Foi um minuto de pânico e de perfeita previsão
do futuro. Então decidimos esperar junto à mercearia (que estava aberta,
sorteeee!) até passar um combi, e assim fizémos o resto do percurso até às
cascatas. Depois do momento de susto senti-me revoltada, até então tínhamos
sido sempre prudentes e não tinha passado nada ao longo da viagem, pelo
contrário. Andámos sempre tranquilas e contentes a disfrutar de um país tão
bonito como é a Bolívia, tinha de vir este matrafão arruinar-nos a tranquilidade
e assustar-nos!
Mas ao chegar à cascata de San Rafael varreu-se-nos o
susto da memória perante o espectáculo impressionante da natureza em todo o seu
esplendor: uma cascata que nascia no topo da montanha e caía abruptamente
através de muitos metros de selva luxuriante. Também aqui ficámos algum tempo
em silêncio simplesmente a apreciar e a ouvir o ruído de trovão da água caindo
desde as alturas.
De regresso a Coroico apanhámos um combi e o motorista
tinha um filho bébé que o acompanhava, e é provavelmente a criança mais feliz
que conheci desde que cheguei à América Latina. Foi uma viagem inesquecível,
com a paisagem deslumbrante, o sol na cara e os guinchos do bébé ao ritmo da
música do rádio.
Pela tarde decidimos subir ao monte Uchumachi, que
coroa Coroico a mil setecentos e oitenta e nove metros de altura. Foi
incrivelmente rápido e fácil de subir, depois da aventura da Ilha do Sol
sentíamo-nos bastante alpinistas. Do topo do monte, coberto de prado e flores
silvestres, tínhamos uma vista a trezentos e sessenta graus das montanhas em
redor, de Coroico mais abaixo, e ao longe podíamos ver a cascata onde tínhamos
estado de manhã. Esta foi a nossa última tarde de passeio, pois no dia seguinte
iniciaríamos as nossas quarenta e oito horas de regresso a Ayacucho. E foi uma
tarde genial, deitadas ao sol no monte, com a Bolívia aos nossos pés.
Monte Uchumachi (1789 msnm)
Carretera de la muerte - antiga estrada de terra batida de La Paz a Coroico
No final dessa tarde pusémo-nos de cervejas num bar da
praça central à espera dos nossos amigos para jantar. Não tínhamos ideia a que
horas chegariam, sabíamos apenas que iriam fazer o mesmo percurso que nós
tínhamos feito na véspera (mas em viagem tudo pode acontecer), pelo que
escrutinávamos ansiosamente cada combi que chegava. E chegaram imensos, porque
à sexta-feira os habitantes de La Paz fogem para Coroico para passar o fim de
semana. Assim que chegou imensa gente, mas nem sinal deles. Decidimos esperar
até termos fome, e nessa altura iríamos jantar e depois logo se via. Como dizia
a Celsa: “Conhecemo-nos por acaso e encontrámo-nos por acaso de novo em
Copacabana; também aqui nos reencontraremos se assim tiver de ser.” Nesta
altura já era de noite, a praça estava cheia de famílias a comer gelados e
crianças a jogar à bola, já tínhamos dado três voltas à vila (que é grande,
como podem imaginar…) e estávamos questionando os nossos estômagos quanto à
fome, quando os vemos aos três, mochilonas às costas qual dejá-vu, a atravessar
a praça.
Se o encontro em Copacabana tinha sido emocionado,
este foi o triplo, com direito a “quase-lágrimas”. E depois do merecido banho
no hostel que lhes tínhamos reservado, fomos jantar como velhos amigos que se
reencontram depois de muito tempo. E acabámos a noite no único bar da cidade à
conversa com um rapaz americano que entretanto eu e a Celsa tínhamos conhecido
na praça, a contar as nossas aventuras dos dois dias que passámos separados, de
viagens passadas e das nossas vidas. O momento inevitável da despedida final
chegou sem que ninguém pudesse impedi-lo, e foi terrível. Cinco dias de amizade
viajante chegavam ao fim e não consigo descrever como foi difícil para mim
separar-me deles. Foi uma empatia brutal e um clima tão fácil de viagem em
conjunto que eu não queria deixá-los e não queria iniciar a viagem de regresso.
No dia seguinte chorei durante grande parte da viagem
de combi de Coroico para La Paz. Por uma questão de tempo decidimos não voltar
a Copacabana (eu poderia não ter conseguido sair de lá!) e reentrámos no Perú
pelo lado sul do Lago Titicaca, na vila decrépita e desolada de Desaguadero.
Carimbos e vistos, Olá Perú outra vez, que bom é estar em casa. Depois da
fronteira apanhámos um combi para Puno, e daí outro para Juliaca, onde chegámos
ao final do dia e de onde apanharíamos avião para Lima no dia seguinte. Foram
quatro combis, um táxi e dez horas de viagem desde Coroico até Juliaca, e eu já
não era pessoa. O hostal que encontrámos era super decrépito mas limpo, seguro
e com água quente. O meu estado de espírito cansado e triste contrastava
completamente com o caos eufórico das pessoas na rua em sábado à noite e
vésperas de Natal. Nessa noite nem jantámos e adormecemos a ver um filme
péssimo na televisão.
O último dia da nossa viagem,
domingo dezasseis de dezembro de dois mil e doze, foi tão contrastante como
todos os outros, e foi um longo regresso a Ayacucho. Fomos de avião de Juliaca
a Lima, e eu já não estava habituada a tanto conforto e luxo. Tivémos direito a
lanchinho e tudo. Em Lima estava um calor infernal debaixo do céu perenemente
nublado, e as nossas forças estavam a chegar ao fim. Depois de comprarmos o
bilhete para o autocarro dessa noite fomos almoçar a um centro comercial perto
do terminal e vimo-nos involuntariamente imersas no caos consumista de um
domingo à tarde em vésperas de Natal. Das ilhas rurais do Lago Titicaca para um
almoço de fast-food num centro comercial limenho. Oh my God, quanto contraste!
Mas ainda tínhamos muitas horas para esperar até ao bus e muito pouca energia
para nos mexermos. Decidimos cometer um pequeno luxo e fomos ao CINEMA (em
Ayacucho não há cinemas nem centros comerciais) ver The Hobbit: voaram-nos a
horas que faltavam e fomos para o bus emocionadas e sonhadoras. A última noite
na estrada teve um sabor de lugar comum (dormir num bus já nos é familiar) e
passou depressa porque nem me lembro de adormecer. Voltei a mim já era de manhã
e estávamos a chegar a Ayacucho, pela paisagem conhecida das montanhas.
Foi um regresso difícil. A
despedida dos nossos amigos e a viagem de regresso despertaram em mim os
sentimentos avassaladoramente saudosistas que vivi nos primeiros tempos de
Perú. Durante toda essa semana alternei entre saudades de Lisboa e saudades do
lago, saudades vossas e saudades deles, e não queria estar em Ayacucho. Além
disso, chegámos a uma segunda-feira de manhã, a nossa porta de casa tinha sido
trancada por segurança pelo pessoal da associação (mas não nos tínham avisado)
e tivémos de esperar para tomar o nosso desejado duche. Mas não havia luz, e
então a comida que deixei no congelador estava estragada, e tive de tomar banho
de água fria. Fui directa trabalhar. Cheguei à reunião semanal completamente
lerda e escutava a todos como se estivesse dentro de uma bolha de água. Durante
vários dias tive um único pensamento: QUERO VOLTAR PARA A ILHA!
Como disse o Miguel a certa altura, viajar abre
portas. E eu digo que quando te pões ao caminho para conhecer outros lugares e
te afastas durante algum tempo da tua realidade pões em marcha mecanismos de
energia dos quais não tens sequer noção. Estes nove dias que pareceram noventa
abriram-me horizontes de possibilidades inesgotáveis, encheram-me os olhos de
paisagens indescritíveis e trouxeram para a minha vida pessoas que me deixaram
marcas indeléveis em tão pouco tempo de convívio. Sinto que já não sou a mesma
que era antes do Lago Titicaca. Se voltasse a ser criança e me perguntassem o
que queria ser quando fosse grande, agora responderia sem pestanejar: “Quero
ser viajante!”
Ilha do Sol a cinco - Miguel, Julia, eu, Celsa e Alejandro, neste pequeno pedaço de paraíso.
Foto by Out The Studio (www.outthestudio.com)
Foto by Out The Studio (www.outthestudio.com)
PS:
Perdoem-me o testamento. Foi muito difícil resumir esta viagem, demorei cinco
dias para escrever este post. Se chegaram até aqui são amigos muito pacientes e
gostam muito de mim. Obrigada!