No sábado vinte e sete de julho,
depois da despedida de Ayacucho e de quatro dias de descanso em Lima, parti de
autocarro em direcção a Huaraz, uma cidade nas montanhas a sete horas para
norte de Lima, a três mil metros de altura, rodeada de picos nevados apelidados
de “os Alpes suíços dos Andes”. Fui com o Luís, um rapaz ayacuchano que eu
tinha conhecido em abril através da minha amiga Tânia, e que tinha a
particularidade de ter estado um ano como voluntário no Alentejo e falar
fluentemente português. Desde que nos conhecemos que falávamos na minha língua
e a força da inesperada e improvável coincidência potenciou a empatia e
confiança entre nós. Por isso, quando em conversa eu lhe tinha dito que ia ter
duas semanas livres para viajar no final de julho e não sabia bem para onde ir,
ele convidou-me a ir com ele visitar uma amiga nessa cidade e fazer por lá umas
caminhadas e passeios pelas paisagens deslumbrantes de lagoas, cascatas, neve e
ruínas no meio das montanhas. Ìamos ficar alojados na casa da Haidy, ex-colega
de universidade dele, e no dia seguinte chegaria também a Claire, voluntária
francesa na ONG Los Gorriones em Ayacucho, para viajar conosco.
Estou a ganhar uma certa
tendência desconfortável para viagens que começam mal. Em maio foi a mochila da
Cátia que não chegou quando devia e alterou os planos iniciais. Desta vez fui
boicotada pelo trânsito e pela minha idiotice, em dois acontecimentos não
relacionados mas sucessivos. Nesse sábado havia um trânsito infernal em Lima
por ser fim de semana prolongado devido ao feriado da Independência do Perú –
as “Fiestas Pátrias” – em que muita gente aproveita para ir à província visitar
a família. Coincide também com as férias escolares a meio do ano lectivo, pondo
meio Perú em movimento pelas estradas. Em consequência, demorámos três horas em
vez de meia para sair da cidade, acabando por chegar a Huaraz com uma carrada
de aborrecimento extra e bastante mais tarde do que a hora a que prevíamos
jantar. A Haidy, extremamente amável e sorridente, veio buscar-nos ao terminal
de autocarros e fomos a casa dela deixar as mochilas antes de voltar para o
centro para beber um copo – podíamos já estar de rastos ao princípio da viagem,
mas era sábado à noite e havia que comemorar as férias. Como se não fosse
suficiente o stress que tínhamos apanhado pelo trânsito, eu decidi dificultar
as coisas para mim mesma – fácil é aborrecido, não é verdade? – e dar um presente
de natal antecipado a um desconhecido: ao sair do táxi deixei o meu telemóvel
no assento sem dar conta. Não o telemóvel ranhoso com que tinha andado durante
nove meses e meio com o meu SIM peruano (e que nunca perdi nem foi roubado),
mas o meu smartphone oferecido por queridos amigos um ano antes, que só andava
comigo quando viajava, e lá dentro os meus dois SIM’s portugueses. Quando me
apercebi, um minuto depois do táxi desaparecer na curva, comecei uma jornada de
chamadas sucessivas para os meus números a ver se alguma alma caridosa me
atendia, mas a experança de ver de novo o objecto que concentrava em si
comunicação, leitor de música, despertador e máquina fotográfica foi
dolorosamente diminuindo a cada chamada perdida.
Fiquei piursa. Durante os dias seguintes ia lembrar-me constantemente
deste episódio lamentável da minha estupidez e ficava temporariamente com humor
de cão, mas para bem da minha sanidade mental, do espírito de viagem e da
paciência dos meus amigos, esforcei-me para me conformar com a evidência de que
era só um telemóvel e de que, na verdade, aquele incidente estava a ser a pior
coisa que me havia acontecido no Perú (a par da infernal viagem de autocarro de
Mâncora a Trujillo em janeiro) – não me posso queixar muito, não é? E assim
comecei um processo de desabituação do telemóvel que durou até há poucos dias
porque não tinha tido tempo (nem muita pachorra) para ir comprar um novo.
Junte-se tudo isto ao facto de a minha máquina fotográfica ter sofrido um acidente
na última semana em Ayacucho, e eu fiquei quase totalmente privada de
tecnologia e da possibilidade de registar os momentos desta viagem. Por isso as
fotos que ilustram este post foram gentilmente cedidas pelos meus companheiros
(o meu computador portátil ainda está vivo, mas a bateria está a decair a olhos
vistos e eu não quero agoirar, mudemos de assunto).
Huaraz, capital da província de Ancash, é uma típica cidade colonial
peruana sem muito interesse não fora ser o ponto de partida para inúmeros trekkings
nas Cordilheiras Branca e Negra, cujos exlibris são os montes nevados Huascarán,
Pisco e Huayahuash, todos acima dos seis mil metros de altura, os mais altos do
mundo a seguir aos Himalayas. E é por isto que é conhecida e incrivelmente
turística, sobretudo na época alta do hemisfério norte, julho e agosto, pleno
inverno nestas latitudes. Em redor da Plaza de Armas as ruas estão infestadas
de agências de turismo onde se pode contratar guias e alugar material de
caminhada, escalada, rafting e outras actividades de aventura. É comparada com
Cuzco pelo ambiente que se vive e pela quantidade de turistas, ainda que para
mim esta comparação seja um insulto. Por isso a ideia para esses dias era sair
de manhã e voltar à noite, mas não perder muito tempo na cidade. Nessa noite de
sábado a Haidy estava num jantar de turma do liceu, pelo que eu e o Luís fomos
para o centro procurar um bar para beber uma cerveja enquanto esperávamos que
ela viesse ter conosco mais tarde. Eu estava desconsoladíssima por causa do meu
telemóvel e ele tentava animar-me e distrair-me. Encontrámos um bar animado
numa das ruas principais, apinhado de turistas e limenhos, com boa música e
cerveja a preço acessível, e contagiados pelo bom ambiente acabámos por dançar
até de madrugada sem dar conta das horas e apesar do cansaço.
Na manhã seguinte tínhamos de ir
cedo buscar a Claire ao autocarro, o que significou acordar apenas um par de
horas depois de nos termos deitado no chão da sala da Haidy. O plano era ir
buscá-la, tormar o pequeno-almoço e apanhar o autocarro para Chavin de Huantar,
uma aldeia no meio das montanhas a três horas de Huaraz onde existe um grande
complexo arqueológico de ruínas pré-incas e muita natureza para observar.
Estávamos todos cansados e silenciosos apesar de ser o princípio da nossa
viagem, e eu previa umas férias muito pouco relaxadas se seguíssemos aquele
ritmo, mas aproveitámos para uma soneca enquanto o autocarro apinhado de
adultos, crianças e galinhas serpenteava pelas montanhas. Também aqui a
paisagem é deslumbrante, e bastante diferente da sierra de Ayacucho, apesar
de ser a mesma cadeia montanhosa dos Andes. Nas minhas várias viagens pelo Perú
constatei fascinada como as mesmas montanhas podem ser tão variadas ao longo
das regiões que atravessam. Aqui em Ancash são abruptas, escarpadas e despidas,
revelando paredes verticais de rocha negra que brilha ao sol intenso, em
contraste extremo com os cumes de neves eternas. Nas bases das montanhas há
vegetação rasteira, cactos e muita água – cascatas, rios, lagoas. A natureza é
exuberante e impõe-se inexoravelmente, fazendo-nos sentir minúsculos e
insignificantes. E o silêncio é espesso e enche os ouvidos como se fosse som.
Caminho de Huaraz para Chavin de Huantar - fotos do Luís
Em Chavín de Huantar trabalha a
Brenda, outra amiga do Luís, que por ser domingo estava disponível para passar
o dia conosco e nos servir de guia. A ideia era visitar o complexo arqueológico
à noite (excepcionalmente aberto fora de horas pelas Fiestas Pátrias) e durante
o dia fazer uma caminhada até uma cascata que havia ali na zona. Para lá chegar
tivémos de apanhar uma sucessão de táxis passando por várias aldeolas perdidas
– de Chavin a San Marcos, depois Huari e até Acopalca. Aí almoçámos truta frita
num restaurante campestre que claramente não tinha infraestrutura para servir a
quantidade de clientes que afluíam naquele domingo, e estivémos quase para ir
embora sem comer tal foi o tempo que demorou – mas a fome e a ausência de
alternativas falaram mais alto. Dessa aldeia sai um antigo trilho inca de duas
horas pelas montanhas até à cascata Maria Jirae, onde chegámos já o sol descia
no horizonte e nos sentámos a descansar e a apreciar a força da água a cair a
pique desde lá de cima do topo do monte desfazendo-se numa míriade de gotas no
lago cá em baixo.
Haidy, eu e Brenda preparando-nos para o trilho. Foto do Luís.
Caminhando: eu, Haidy, Luis e Claire. Foto da Brenda.
Cascata Maria Jirae à vista. Fotos da Claire.
Haidy, Luis, Brenda e eu. Foto da Claire.
Para regressar empreendemos a sucessão de táxis até Chavín, onde
chegámos a meio de um apagão eléctrico. Que desilusão! Sem luz não poderíamos
visitar as ruínas, razão principal para lá termos ido, e íamos gastar uma noite
de alojamento em vão. Estávamos cansados, desconsolados, procurámos um hostal e
eu já considerava a hipótese de ir dormir às sete da noite. Sem luz não havia
nada para fazer, e as ruas estavam desertas – Chavín não é propriamente uma
metrópole movimentada . Mas nem tudo correu mal: uma hora depois a luz voltou e
ainda havia tempo para ir às ruínas, pelo que não perdemos a viagem. Tivémos
também o privilégio de uma visita guiada à borla, já que no complexo
arquológico trabalha a Natali, uma arqueóloga amiga da minha amiga Stefani,
limenha a trabalhar em Ayacucho, com quem eu tinha contactado uns dias antes e
que amavelmente se ofereceu para nos mostrar o lugar. É verdade, toda esta
viagem foi um encadeamento venturoso de amigos dos meus amigos, todos amáveis e
super prestáveis, fazendo-me sentir como as cadeias de afecto podem funcionar
tão bem através dos seus vários elementos, e deixando-me a extrema vontade de
poder eu retribuir de alguma forma no futuro. Talvez não a estas pessoas
directamente, mas quem sabe a amigos de amigos seus.
Estava reunido um grupo do mais
heterogéneo e curioso que se possa imaginar: eu, portuguesa; o Luís, ayacuchano
e “o homem do grupo”; a Claire, francesa silenciosa e atenta; a Brenda, limenha
faladora de origem africana com o cabelo às trancinhas; a Haidy, ancashina sorridente,
e a Natali, também limenha, baixinha, magrinha, simpatiquíssima e
esclarecedora. A visita às ruínas foi uma revelação. Eu não sabia nada de nada
sobre a civilização Chavin, nem sequer sobre a sua existência, tendo lá ido por
pura sugestão do Luís – nestes dias abdiquei do meu espírito de iniciativa e
deixei a função de guia, que muitas vezes assumo, totalmente nas mãos dele. O
complexo arqueológico cobre uma vasta área de planície e colinas da qual se
estima que apenas dois porcento esteja já escavada. Desta parte, só metade está
aberta ao público, e é tal quantidade de pedra que assusta especular sobre a dimensão
total. O sítio de Chavin parece ser uma cidadela antiga com um centro
cerimonial constituído por praças circulares, paredes esculpidas e galerias
subterrâneas. A Natali contou-nos o que se sabe sobre esta civilização que
floresceu ali cerca de mil anos antes de Cristo, e paralelamente revelou-nos o
trabalho dos arqueológos, as estratégias de intervenção e as teorias
explicativas. O ambiente misterioso catalisado pela escuridão parcamente
combatida com candeeiros pontuais ao longo dos trilhos, as paredes altas de pedra
branca contra o céu pejado de estrelas e o cansaço extremo do dia imprimiu uma
recordação de intenso dramatismo daquela visita e daquele lugar.
Chavín de Huantar à noite. Fotos da Claire.
À chegada ao hostel, apesar de ainda ser cedo, caímos nas camas de um
dormitório comum e acordámos às três da manhã seguinte, para apanhar o primeiro
combi de regresso a Huaraz. Outra vez poucas horas de sono, de novo viagem
longa pelas montanhas, outro dia de cansaço. Não sei como aguentei tanto sem
cair para o lado, sobretudo considerando que passávamos os dias a caminhar
depois de quase não ter dormido. É energia de viagem!
Essa segunda-feira vinte e nove de julho, dia da indepêndencia do
Perú, foi o mais bonito de Huaraz: chegámos de manhãnzinha, dormimos uma sesta
matinal, tomámos um duche e o pequeno-almoço em casa da Haidy e arrancámos para
a Lagoa de Llanganuco, na base do monte Huascarán. Para lá chegar é preciso
apanhar um combi até à vila de Yungay e daí caminhar três horas ou apanhar um
táxi. Optámos pelo táxi. A lagoa fica a uma hora pelo meio das montanhas,
seguindo uma estrada serpenteante que atravessa aldeolas e campos cultivados. À
medida que se sobe a vegetação vai diminuindo, acentuando a inclinação das
paredes de rocha negra contra a estrada estreita e íngreme. A Lagoa de Llanganuco
é na verdade um conjunto de dois lagos sucessivos: o mais longínquo é azul, o
seguinte é verde. O taxista deixou-nos no primeiro e caminhámos até ao segundo
(uma hora de trilho), onde ele estaria à nossa espera para nos levar de volta a
Yungay. As cores da água são deslumbrantes, azul e verde turquesa cristalino
como o mar das Caraíbas, mas em versão gelada. Caminhámos ao longo da estrada
deserta com as lagoas do lago esquerdo e pequenos lagos do lado direito,
completamente rodeados de escarpas negras e, atrás, montanhas brancas de neve.
Com um sol luminoso sobre as nossas cabeças todas as cores eram vibrantes e o
contraste dos azuis com o preto e o branco era de cortar a respiração. Ao
longe, na margem da lagoa, havia vaquinhas a pastar, pequenos pontos negros no
prado castanho. Que paisagem, que lugar, que benção estar ali! Obrigada
PachaMama. Até o frio cortante era delicioso, porque fazia apetecer o sol na
cara. E foi então que se deu uma coincidência inesperadíssima: encontrei a
minha amiga Emilie, uma rapariga belga a trabalhar em Ayacucho, que eu sabia
que estava por aquelas bandas com o irmão, naqueles dias, para escalar o monte
Pisco, mas que eu não podia contactar por ter perdido o telemóvel. Tinha
pensando muito nela naquela manhã, com muita pena porque ia perder a última
oportunidade de me despedir definitivamente antes de ir embora do Perú, quando
passa por nós, no meio daquele deserto natural sem uma alma à vista, um táxi
com ela e o irmão lá dentro, de regresso da escalada. Caracinhas! Abraçámo-nos
estupefactas e emocionadas pela improbabilidade daquele encontro e combinámos
jantar no dia seguinte, o último em que ainda estaríamos todos juntos em
Huaraz.
Vista do monte Huascarán a caminho da Lagoa de Llanganuco.
As seguintes fotos são do Luís, da Claire e da Brenda.
Companheiros de viagem: eu, a Claire, o Luís e a Brenda.
Não são vaquinhas na distância, são a Claire e o Luis. Foto minha na máquina do Luis.
Queridos ayacuchanos: o Luis, eu e a Claire
De regresso a Yungay almoçámos
numa tasquinha e fomos visitar o recinto do Campo Santo: os restos da cidade
original que ficou completamente soterrada por uma avalanche do Huascarán nos
anos setenta. Morreu praticamente toda a população e hoje em dia pode ver-se o
que sobrou do tecto e das torres da catedral e o monte do cemitério,
sobressaíndo de uma camada de cerca de sete metros de lama e terra que cobriu
as casas e as ruas. Por toda a zona estão espalhados pedregulhos do tamanho de
autocarros que foram projectados do alto da montanha para ali, e à entrada há
um pequeno museu ao ar livre com fotografias do antes e do depois. É
impressionante e comovente. Ao fundo do vale, sobre o que era a antiga Plaza de
Armas, foi construída uma imitação da fachada da catedral original, e dali obtém-se
uma vista inesquecível do Huascarán, que se ergue imponente nos seus seis mil
metros de altura nevados. Ficámos por ali um bom bocado a descansar ao sol, a
dormir uma sesta, a apreciar a paisagem. O Luís tinha vontade de empreender uma
escalada ao cume da montanha, mas não obteve da nenhuma de nós o apoio moral
necessário para passar das palavras à acção. Fiquei com pena dele, mas escalar
montanhas não é algo que me puxe. Caminhar trilhos nelas, isso sim.
Reconstrução da fachada da catedral original da antiga cidade de Yungay. A alameda cobre actualmente a antiga Plaza de Armas, soterrada por cerca de sete metros de lama e neve nos anos setenta.
Fotos da Brenda.
Huascarán visto do Campo Santo de Yungay. Foto do Luis.
Voltámos para Huaraz a meio da
tarde num combi apinhado de peruanos, passeámos um pouco pela rua principal e
pela Plaza de Armas, bebemos um capuccino e fizémos compras para o jantar.
Nessa noite cozinhámos em casa da Haidy, que ficou até tarde na conversa com o
Luís enquanto eu e a Claire roncávamos felizes nos colchões insufláveis. Não
fosse o frio teria sido uma noite perfeita, mas tivémos de dormir com casaco,
gorro e cachecol dentro do saco-cama, e meias de lã e a toalha de banho nos
pés.
Na manhã seguinte acordámos
tarde e sem despertador, tomámos um pequeno-almoço delicioso de pão de trigo
fresco cozido a lenha no forno da mãe da Haidy e saímos para uma caminhada até
ao cimo de um monte ali perto para ver umas ruínas pré-incas. As nossas
anfitriãs disseram que era uma caminhada de uma hora colina acima, os
habitantes das aldeias por onde passámos davam-nos informações contraditórias
sobre distâncias e tempos, e o sol brilhante queimava tanto que parecia verão e
derretíamos debaixo da roupa, progressivamente carregada às costas à medida que
subíamos mais e mais. A ideia era ir a pé até às ruínas e depois descer de
combi, mas quando passava um por nós questinávamo-nos se tínhamos tomado a
decisão mais sensata. Valeu a pena pelas aldeiazinhas por onde passámos, que me
faziam lembrar a terra do meu pai no distrito de Viseu, pelos agricultores,
crianças, vaquinhas e cães que encontrámos pelo caminho. É um prazer caminhar
rodeada de tão bela paisagem e em tão boa companhia. O Luís eu já conhecia
relativamente bem, a Claire eu só tinha visto uma vez em Ayacucho quando nos
apresentaram, e estava a ser uma boa descoberta. Adoro quando companheiros
improváveis se juntam com o objectivo único de partilhar uma viagem e nasce uma
pequena família, única e irrepetível no tempo, no espaço e na memória, em que
os feitios se compatibilizam sem grandes esforços e cada um se sente aceite e confortável.
Isto exige uma grande dose de tolerância e adaptabilidade, e eu fui muito,
mesmo muito sortuda durante a minha estadia no Perú porque quase todas as
pessoas com quem viajei tinham estas características em abundância. Quando cada
um deixa de puxar para o seu lado, acabamos por puxar todos na mesma direcção,
e partilhamos momentos intensos e inesquecíveis. Chegámos às ruínas não uma mas
sim duas horas depois, para darmos com a fronha numa casa de pedra da
civilização Wari (séculos onze a treze, até serem dominados pelos Incas)
bastante grande, bem conservada e impressionante pela técnica construtiva, mas
dificilmente justificativa, por si só, da caminhada até lá. O verdadeiro prémio
foi o almoço de sopa de fava e truta frita num cafézinho no recinto com vista
para as montanhas. Descemos de combi e fomos a uma esplanada no centro da
cidade beber uma cerveja enquanto se ia acabando o sol daquele dia.
Trilho para Willkawain. Fotos do Luis.
Campo e ruínas de Willkawain. Fotos da Claire.
Desde que tinha saído de Lima
que eu vinha com o desejo de aproveitar os meus dez dias de viagem para
conhecer algo mais do que Huaraz. Habituada a estar no máximo dois dias em cada
terra achei que era tempo suficiente para aproveitar para ir a outra zona do
Perú. Além disso, o Luís só tinha uma semana de férias, pelo que no sábado
seguinte teria de regressar a Lima para depois seguir para Ayacucho,
deixando-me com quatro dias de viagem sozinha ou regressando antecipadamente,
pois eu só teria de forçosamente voltar à capital na terça-feira seguinte. Por
isso a ideia de sair de Huaraz mais cedo e separar-me do Luís vinha ganhando
peso desde que começámos a viagem.
Numa visita de fim de semana a
Lima em fevereiro conheci um casal de amigos do Àdrian, o meu amigo limenho
amigo da minha querida Isabel (lá está a cadeia dos afectos), acabados de
chegar de um trekking de vários dias no norte do Perú, na região de
Chachapoyas, que culminava num complexo arqueológico de grandes dimensões e
profundo significado. Ainda recordo vividamente, e jamais esquecerei, o
entusiasmo gaguejante e o brilho nos olhos ao contarem a experiência
exclamando: “É o Machu Pichu do norte do Perú, e daqui a uns anos vai ser super
turístico!”. Desde essa altura que fiquei, obviamente, em pulgas para lá ir,
mas nunca mais tinha pensado a sério nisso por não vislumbrar a possibilidade
de o fazer. Voltei a lembrar-me quando agora se me apresentou o tempo para
viajar. Andava a pesar a hipótese de ir sozinha já que o Luís não tinha tempo
suficiente, mas o remoto da região e o alto nível de aventura e
inesperabilidade faziam-me hesitar. E depois de ter perdido o telemóvel passei
a sentir-me muito mais vulnerável por não ter como pedir ajuda ou informações
caso algo acontecesse. Andei os três dias em Huaraz sem saber o que fazer
adiando diariamente a decisão. Mais uma vez, PachaMama me deu um sinal de
protecção e o Perú mostrou-me que se desejar mesmo muito uma coisa e procurar
todos os meios para a realizar, invariavelmente acaba por acontecer: a Claire
tinha um mês livre para viajar no Perú e nenhum plano específico para seguir;
quando lhe propus vir comigo quatro dias a Chachapoyas fazer o trekking, ao
princípio pediu-me tempo para ponderar (pois inicialmente tinha pensado ficar a
semana toda com o Luís), mas depois aceitou alegre e entusiasticamente. Além
disso, o Luís tem uma amiga francesa dona de uma agência de viagens em
Chachapoyas, com quem falei para nos contratar um guia e organizar o trekking.
Foi uma autoestrada de facilidades! E essa amiga do Luís tinha sido voluntária
e coordenadora na mesma ONG da Claire uns anos antes. Família, portanto!
Então nessa terça-feira trinta
de julho jantámos com a Emilie e o irmão numa hamburgaria de Huaraz antes de eu
e a Claire apanharmos o autocarro para o norte. O Luis ainda dormiu essa noite em
casa da Haidy e no dia seguinte seguiu viagem para uma comunidade ecológica
noutra zona das montanhas de Ancash. Foi a despedida final, até à próxima que
não sabemos quando, e ecoavam nos meus ouvidos as palavras dele nessa mesma
manhã, sentados no passeio a apanhar sol, com o seu português de pronúncia
latina afectuosa: “Vou ter saudades tuas”. Não convivemos muito em Ayacucho nem
me habituei demasiado a ele, mas mesmo assim ganhámos familiaridade e foram
muito bons aqueles dias juntos. Custou-me dizer adeus e fiquei outra vez
emocionada, como na partida de Ayacucho na semana anterior, com as caritas das
minhas crianças gravadas na memória. E foi assim que eu e a Claire, sem quase
nos conhecermos, empreendemos um troço de viagem juntas passando de cinco a
duas, rumo à aventura extraordinária que nos esperava a norte e que iria coroar
em grande a minha despedida do Perú, o meu amado país de adopção onde me sinto
em casa onde quer que vá, mesmo que não conheça ninguém, porque ali são todos
uma grande família apesar das diferenças. Ou pelo menos eu senti sempre isso.
Para ir de Huaraz a Chachapoyas demora-se uma noite de viagem até
Trujillo, daí quatro horas até Chiclayo seguindo a costa, e de novo outra noite
para chegar à cidade capital da província de Amazonas, já depois de
atravessados os Andes, na transição entre serra e selva – no total vinte horas
de viagem. Chegámos a Trujillo às quatro da manhã e tivémos de esperar no
terminal até às sete para que abrissem as bilheteiras e pudéssemos comprar o
resto da viagem. Já me tinha passado um pouco de tudo no Perú mas ainda me
faltava dormir num terminal de autocarros, e foi o que fizémos naquela
madrugada, encaixadas entre as mochilas e tapadas com as toalhas, rodeadas de
outros passageiros na mesma situação. A certa altura chegou outro autocarro
cheio de turistas adolescentes provavelmente australianos ou canadianos e os
vigilantes do terminal acordaram “amavelmente” os dorminhocos para deixarem
lugares livres para sentar. E então aprimorei e minha técnica de dormir
sentada. Quando abriram as bilheteiras disseram-nos que já não havia bilhetes
para Chachapoyas para aquela noite. O nosso trekking começava no dia seguinte e
eu não tinha dias suficientes para estar a adiar. Então informaram-nos que na
outra ponta da cidade havia outro terminal de onde saíam autocarros para o
mesmo destino. Lá fomos nós de táxi, sonâmbulas e estremunhadas mas não sem regatear
o preço, para bater com o nariz na porta porque ali só abriam às oito. Dormir
sentada mais um bocadinho para aproveitar todas as horas de sono disponíveis
tornou-se um pequeno ritual.
Os autocarros para Chachapoyas saem às quatro da tarde, fazem uma
paragem em Chiclayo à hora do jantar e depois seguem viagem. Isto significava
que ficávamos com oito horas livres em Trujillo. Enquanto não conseguíamos
raciocinar decentemente sobre o que fazer com tanto tempo decidimos ir para o
centro tomar o pequeno-almoço. Eu já tinha estado naquela cidade em janeiro com
a Celsa, mas na altura não a visitámos e fugimos directamente para a praia de
Huanchaco (e as aulas de surf!). Agora tive oportunidade de conhecer a Plaza de
Armas, as ruas em redor e visitar dois museus, um dos quais (de Arqueologia e
Antropologia) sobre as várias civilizações que habitaram a costa norte do Perú
desde há milénios atrás até à dominação inca e depois a chegada dos espanhóis. Muito
interessante! E depois, outra surpresa inesperada (numa viagem recheada delas),
e esta daquelas de me fazer feliz por muito tempo: a Claire manifestou o desejo
de ir ver o mar nas horas que ainda tínhamos e sem planear com antecedência dei
por mim de novo na praia de Huanchaco onde fui tão feliz em janeiro. Que emoção
estar ali outra vez! Estava tudo igual! À medida que o combi avançava ia
explicando à minha companheira o que estávamos a ver, os melhores hosteis para
ficar, restaurantes para comer e, claro, a melhor escola de surf. Ao contrário
de em Trujillo, ali o sol brilhava esplendoroso e apesar de supostamente ser “inverno”,
estava calor e havia gente a tomar banho. Ficámos algum tempo sentadas na areia
a ver o mar e a apanhar sol, e as imagens, sons e cheiros de seis meses antes
vinham-me à memória. Estava tão feliz! Huanchaco é a minha Caparica do Perú, e
provavelmente se me obrigassem a voltar para este país era aqui que eu
escolheria viver, se pudesse escolher. Antes de ir embora passámos na escola
The Wave para dizer olá e foi agradável constatar que se lembravam de mim e do
meu nome. E tal como em janeiro, se agora fechar os olhos ainda consigo ver
claramente o brilho do mar e ouvir o som das ondas. Que abençoada surpresa.
Huachaco. Foto da Claire.
Apanhámos o autocarro da empresa Kuelap à hora prevista, mudámos em
Chiclayo onde nos deram jantar e dormimos a noite toda até Chachapoyas, onde
chegámos às cinco da manhã. Nas terras pequenas não há terminal de autocarros e
os escritórios das agências fecham no final do horário de expediente. Por isso
àquela hora o desembarque e a recolha das bagagens foi feito literalmente no
meio da rua. Depois de duas noites de autocarro o cansaço voltou a acusar e o
cérebro demorou a arrancar, pelo que ficámos uns instantes, de novo sonâmbulas
e estremunhadas, com as mochilas no meio do passeio sem saber o que fazer. A
agência de turismo da Christelle, a amiga do Luís, ficava na Plaza de Armas, e
ela tinha-nos arranjado um hostel onde poderíamos tomar um duche antes de começar
o tour nessa mesma manhã. Por isso apanhámos um táxi para ir esperar por ela à
porta da agência. Ao longo do caminho (na verdade, foram cinco minutos pagos a
peso de ouro) vimos ruas cheias de gente, e quando chegámos à praça
encontrámo-la repleta de multidões eufóricas a dançar ao som de bandas ao vivo.
Eram cinco da manhã e ainda estava escuro! Eu que até aí estava um pouco
preocupada por ter de esperar à porta da agência àquela hora, naquele momento
fiquei surpreendida porque parecíamos ter caído em cheio numa cidade dominada
pela loucura. Os dançarinos eram sobretudo jovens com os seus uniformes de
colégio e eu não conseguia perceber se ainda estavam acordados desde a noite
anterior ou se tinham acordado de madrugada para vir dançar para a praça. Era
tal a multidão em delírio que quando vi a Christelle ao longe tive de me pôr
aos pulos para ela me ver a mim. Não nos conhecíamos, mas gringas numa pequena
cidade do Perú nunca passarão despercebidas. E depois das apresentações ela
explicou-nos que naquele mesmo dia, primeiro de agosto, começavam as festas da
cidade, que se estendiam por duas semanas durante as quais haveria música de
manhã à noite por todo o lado.
A Christelle é francesa e vive em Chachapoyas com o namorado, Olivier.
Ambos viajaram largamente pela América Latina e foram voluntários (e depois
coordenadores) na ONG Los Gorriones em Ayacucho. Apaixonaram-se pelo Perú e
sobretudo por aquela região, tendo decidido criar uma empresa de turismo e
fixar-se aqui. Nos dias seguintes eu ia perceber porquê ao dar-me conta da
imensidão de lugares históricos e naturais de uma beleza singular que aqui
existem, muitos mais dos que o que eu já tinha ouvido falar. Tomámos o
prometido duche no hostel Aventura Backpacker’s Lodge, do Sr. Ricardo (também
ele francês), refizémos a mochila para os quatro dias deixando lá o resto da
bagagem, mas não tivémos tempo para pequeno-almoço porque o guia já estava à
nossa espera para partir. Só deu para comprar pão, água, bananas e chocolate numa
mercearia, e corremos para o princípio da nossa aventura. Inicialmente eu
pensei que seríamos integradas num grupo como no Caminho Inca, e na verdade
muitas das minhas expectativas estavam condicionadas por essa experiência
anterior. Mas ao longo dos dias seguintes todos os meus critérios iriam ser
reposicionados ao contexto de Chachapoyas.
Esta região é riquíssima em potencial turístico mas ainda muito pouco
conhecida. A maioria dos visitantes são peruanos e os poucos estranjeiros são
mochileiros. Neste momento ainda é possível disfrutar destes lugares com esse
sabor delicioso de se ser o único turista e de as coisas ainda poderem
acontecer com simplicidade, mas isso está a mudar aos poucos, daqui a uns anos
será tão turístico como Cuzco. Por isso agora não havia nenhum grupo, não havia
mais turistas para o trekking além de nós, havia apenas um rapaz de Lima que
iria conosco no passeio de carro do primeiro dia e depois voltava a
Chachapoyas, pelo que depois seríamos apenas três: eu, a Claire e o Ronald, o
nosso guia. Ao princípio fiquei bastante constrangida e a Claire partilhava da
mesma sensação, mas com o passar do tempo fomos ganhando familiaridade e acabou
por ser uma situação completamente diferente do Caminho Inca mas igualmente
intensa, bela e inesquecível. Eu ia com muito medo das comparações e das
expectativas, e apesar de ao longo da viagem ter pensado muitas vezes “Isto no
Caminho Inca não foi nada assim…” graças a Deus esta experiência foi
suficientemente diferente para não fazer sentido qualquer comparação, e quatro
dias depois eu senti-me abençoada por a ter podido viver.
O primeiro dos quatro dias de tour organizado pela agência Perú Nativo
consistiu num passeio de carro por vários lugares arqueológicos na zona da
aldeia de Lamud, a uma hora para oeste de Chachapoyas. Saímos às sete e meia
aceleradas pela rápida sucessão de eventos, e em Lamud pudémos tomar um café e
alugar umas galochas de borracha para a visita à Caverna de Quiocta. Eu não
estava a perceber bem a necessidade dos apetrechos até pararmos num planalto
verdejante no meio das montanhas e começarmos a descer umas escadas na encosta
para chegar à entrada da gruta. Estava a ter uma dificuldade enorme em começar
aquela viagem, a minha cabeça andava à roda com todas as coisas que tinham
acontecido em pouco tempo e ainda não tinha conseguido focar-me no aqui e
agora. E a quase total ausência de conhecimento prévio sobre os lugares a
visitar – sabíamos apenas que íamos fazer um trekking brutal a acabar nas
ruínas em Kuelap, passando por outros lugares incríveis, mas sem saber quais –
não nos preparou minimamente para o impacto do que estavávamos para ver,
aumentando-o exponencialmente.
A Caverna de Quiocta é uma sucessão de corredores e galerias
subterrâneas com quase um quilómetro de comprimento a cerca de cinquenta metros
de profundidade. No interior a luz natural morre logo no primeiro corredor, e
corre uma nascente que enlameia chão e paredes tornando a sua travessia algo
perigosa se não houver iluminação. Equipados de lanternas e um foco potente
avançámos lentamente pelas cavidades pejadas de estalactites e estalagmites e
enterrando-nos na lama até aos joelhos – daí as galochas. As galerias onde
desembocam os corredores são circulares e muito amplas, com vários metros de largura
e altura, quais salões de baile de um palácio rochoso. Os tectos são quase
perfeitamente planos e as eflorescências parecem esculturas humanas. É incrível
pensar que aquelas obras de arte tão perfeitas e completamente naturais permanecem
na escuridão total a maior parte do tempo. O Ronald ia partilhando várias
informações curiosas enquanto nós tentávamos não escorregar nem morrer nas
lamas movediças e contou-nos da utilização milenar daqueles espaços pelos habitantes
locais e por shamanes em rituais ancestrais de culto à vida e à fertilidade,
ainda realizados nos dias de hoje. Quando chegámos à última sala acessível
parámos junto a um pequeno lago, a Fonte da Fertilidade, e ele disse para
apagarmos as lanternas e nos calarmos. Ficámos assim em silêncio durante um
tempo indeterminado naquele vazio negro em que era impossível descortinar
qualquer forma por mais que os olhos se habituassem à escuridão. Não havia um
fio de luz natural a entrar por nenhum orifício. E eu assustei-me com a
impossibilidade total de sair dali caso as lanternas falhassem.
A certa altura começámos a ouvir uma melodia arbitrária de sons graves
como um xilofone ou uma flauta de pã àspera. Não conseguia identificar a
proveniência apesar de ser claro que era o Ronald a tocar qualquer coisa. Os
sons enchiam o espaço sensorialmente apertado pela escuridão, ecoavam por toda
a caverna e regressavam numa cascada sonora. O facto de não ver aumentava as
sensações nos outros sentidos e fiquei com pele de galinha. É difícil descrever
por palavras este momento, que me apagou da mente todos os acontecimentos das
semanas anteriores e me fez entrar totalmente naquela viagem, no aqui e agora.
Quando voltámos a acender as lanternas o Ronald fez-se de desentendido e negou
a autoria dos sons durante vários minutos mas não conseguiu evitar um meio
sorriso denunciador. E depois apontou-nos umas estalagmites ocas da nossa
altura e em forma de folha de papel crepe, que ao tocar com os dedos produziam sons
quais tubos de órgão, variando o tom em função da espessura. Incrível! A
natureza é de facto artista primordial!
Dali já não podíamos avançar mais, a sala seguinte estava reservada
para os shamanes que ainda lá realizam os rituais ancestrais e o resto da gruta
era inacessível. Voltámos para trás, percorrendo de novo o trilho coberto de
lama e tentando não cair nas poças de profundidade insondável. Sentia-me nas
Minas de Mória do Senhor dos Anéis. A certa altura encontrámos outro grupo de
turistas com um guia amigo do Ronald, em sentido contrário, constituído por
duas famílias com crianças pequenas. Perguntaram sobre a dificuldade da
caminhada e nós, entreolhando-nos, não quisémos assustá-los mas não podíamos
deixar de os precaver: havia ali miúdos que podiam ficar enterrados quase até
ao pescoço. O guia falou com o Ronald num espanhol aquechuado que mais ninguém
percebeu – os turistas seriam muito provavelmente limenhos – e ele
respondeu-lhe num tom que parecia um raspanete discreto, e depois passou-lhe a
lanterna que eu levava na mão. Mas não explicou nada a ninguém. Eles pegaram
nos miúdos ao colo para prosseguir e nós olhámos uns para os outros pensando
nas partes mais escorregadias do percurso. Aquilo não ia correr bem, mas eu desejei
intensamente que corresse. Fiquei com a sensação, não provada, de que o outro
guia não estava a cumprir todos os requisitos de segurança e que o nosso guia o
teria chamado à atenção. Não chegámos a saber porque não nos voltámos a cruzar
com eles.
Descampado sobre a Caverna de Quiocta. Fotos da Claire.
Acesso à Caverna.
Entrada
Um órgão de tubos natural
Regressando à superfície em direcção ao carro passavam por nós mais
visitantes bem vestidos com um ar óbvio de férias e de passeio, contrastando
com as nossas vestimentas simples de viajantes mochileiras e as botas
enlameadas para as quais olhavam surpreendidos (a maioria não tinha). Não
fiquei lá para ver os resultados à saída, mas agradeci mentalmente por ter um
guia que apesar de um pouco rude parecia bastante consciencioso, e foi nessa
altura que comecei a confiar nele.
Almoçámos numa tasquinha numa aldeia a cerca de uma hora dali e
seguimos para outra zona nas montanhas onde estão os sarcófagos de Karajia,
umas tumbas de cerâmica encastradas na ravina a vários metros de altura. Os
sarcófagos à escala humana têm formas antropomórficas, pertencem à cultura dos
Chachapoyas, senhores desta região até à expansão do Império Inca e posterior
domínio espanhol, e estão inacessíveis porque o caminho utilizado para os
transportar terá sido destruído para proteccção dos corpos contra sacrilégios.
No seu interior foram encontradas múmias em diferentes estados de conservação,
que estão agora no Museu da Cultura Chachapoyas na cidade de Leymebamba, e os
sarcófagos são apenas observáveis da base da escarpa, não sendo possível
aproximarmo-nos. Para os ver é preciso caminhar uma hora por um trilho que
atravessa uma aldeia e os seus campos cultivados, descer a ravina e voltar a
subir. Do lugar onde estão pousados observa-se uma paisagem bela de montanhas
verdejantes de ceja de selva (a denominação dada às zonas de transição entre a
serra e a selva) – de facto uma vista incrível para toda a enternidade.
Caminhada até aos sarcófagos de Karajia. Fotos da Claire.
Este dia terminou no vale de Huaylla Belen. A nossa primeira visão
desse lugar foi da estrada no cimo da montanha, quando começámos a descer. É
uma visão impressionante: um vale largo e plano coberto de pasto verde,
entalado entre montanhas, pejado de vaquinhas e banhado por um rio estreito que
o atravessa não a direito, mas aos ziguezagues em forma de serpente. A cada
curva e contracurva da estrada sustíamos a respiração pela aparição momentânea
do panorama. A certa altura avistámos uma casinha no meio do nada, qual refúgio
de montanha, e o Ronald disse que era ali que íamos dormir. Eu e a Claire
olhámos uma para a outra incrédulas de entusiasmo.
O motorista e o rapaz de Lima (dos quais sinceramente não recordo o
nome) voltaram para Chachapoyas e deixaram-nos ali com as mochilas e as
provisões. A casinha foi contruída numa das pontas do vale pela Cáritas Perú
num programa social de incentivo ao turismo vivencial, para a pernoita de
visitantes à região. Tem uma camarata com cinco beliches, roupa de cama e
muitos cobertores, uma casa de banho com duche e uma cozinha com lava-loiça,
fogão e utensílios. Tem água (fria) mas não tem electricidade. Tem um alpendre
com uma grande mesa e vista para o vale, o rio, as vaquinhas e as montanhas. A
presença de inquilinos anteriores, denunciada pelos restos de velas, pacotes de
açúcar, frascos de geleia de morango e café instantâneo transmitia um
sentimento de cumplicidade com esses desconhecidos com quem estávamos a partilhar,
à distância de tempo, aquela experiência venturosa.
O impressionante vale de Huaylla Belen visto de cima. Fotos da Claire.
A nossa casa por uma tarde e uma noite.
A partir daqui não tenho, muito tristemente, mais fotos para ilustrar
este relato. A câmara da Claire estava a ficar com pouca bateria, ela não tinha
trazido o carregador, e como queria guardar para a chegada à fortaleza de Kuelap
no último dia do trekking, decidiu desligá-la nesta altura. Por isso,
infelizmente, as imagens da parte mais intensa e inesquecível desta nossa
aventura ficarão para sempre gravadas apenas na nossa memória. E eu tentarei
transmitir-vo-las o mais fielmente que me for possível por palavras, estes
instrumentos perigosos, dúbios e parcos na descrição das emoções. E vocês terão
de acreditar em mim, se quiserem :)
Depois do reconhecimento inicial aos aposentos o Ronald disse que
íamos à pesca do jantar e que se não apanhássemos nada não comíamos. Por aquela
altura nós já sabíamos que ele falava sempre através de piadas, e que quando
queria dizer algo importante avisava: “Ok agora isto é a sério”. Por isso não
aceitámos a ameaça de dormir sem jantar quando saímos para o rio atrás dele,
que levava na mão apenas um carreto de fio de nylon com um anzol na ponta. O
sol ia a meio da sua descida para o horizonte e a brisa antecipava o frio que
viria com a noite. Naquele rio havia muitas trutas apesar de eu não ter visto
nenhuma, nem mesmo no exacto momento antes de elas morderem o isco e serem
sacadas cá para fora, não percebendo como é que o Ronald as via e as apanhava.
Não consegui aprender a pescar à linha, na verdade o nosso guia não demonstrou
muita paciência para nos ensinar, mas apreciei intensamente o ambiente em
redor. Havia vaquinhas de todas as cores a pastar calmamente enquanto nós deambulávamos
pelas vertentes baixas, lançávamos pedras saltitantes e esperávamos que o
número de trutas apanhadas fosse suficiente para voltarmos para casa, o que só
aconteceu três horas e quatro trutas depois.
Nessa altura, o Ronald confessou que na verdade as trutas eram para o
pequeno-almoço, porque para jantar teríamos sopa de massa com frango e verduras
cozinhada por ele. Então mas…? E foi aí que eu percebi que aquela pessoa era
uma personagem muito peculiar que não nos ia tratar como princesas, como os
guias do Caminho Inca, e fiquei um bocado de pé atrás. Mas nessa noite e nos
dias seguintes assistimos a inúmeras demonstrações de cuidado e atenção que
equilibraram a simplicidade e alguma rudeza daquele camponês chachapoya recomendado
pela agência, que nos guiou pelo meio da selva e nos mostrou tesouros naturais
quase inacessíveis, nos contou muitas histórias e aventuras, e na verdade respeitou-nos
sempre e tratou-nos bem.
Enquanto fervia a sopa ao lume eu e a Claire estávamos maravilhadas a
apreciar o céu estrelado. Tal como em Chavín umas noites antes, havia tantas
estrelas que quase não se via um pedaço de escuridão, e a total ausência de luz
nas imediações próximas e longínquas daquele vale aumentava-as, tão grandes e
luminosas que pareciam a ponto de cair do céu. Vimos inúmeras cadentes a
atravessarem a abóboda celeste, e de vez em quando ouvíamos uma vaquinha a
mugir ali próximo. Não fosse o frio e teríamos ficado ali fora muito tempo. Mas
entretanto o jantar estava pronto e comemos tudo o que havia, às luz das velas
e ao som das histórias do Ronald, que nos contou como sobreviveu trinta e sete
dias na selva quando estava no exército e o seu grupo se separou para fugir a
uma emboscada dos narcotraficantes na selva de Ayacucho. Tinha dezanove anos.
Sobreviveu porque desde miúdo o avô lhe ensinou a pescar, a fazer fogo com
madeira e a orientar-se na floresta. Era uma história incrível e
impressionante, digna de filme, e naquela noite eu decidi duas coisas: não
duvidar nem pôr em causa o conhecimento do nosso guia, e não me queixar durante
o caminho. Dores de pernas ou de costas não se compararíam nunca ao que ele
teria passado nesses trinta e sete dias, e eu não queria que olhassem para mim
como uma florzinha de estufa.
Na manhã seguinte acordámos ao som de mungidos e ao cheiro de um
pequeno-almoço peculiar: chá de folhas de coca, café instantâneo, pão com pêra
abacate e caldo de truta cozida. Arrumámos as mohilas, deixámos tudo mais limpo
do que encontrámos e partimos para o nosso segundo dia de tour, primeiro de
caminhada. Tínhamos de fazer dezasseis quilómetros atravessando todo o vale
Huaylla Belen, subindo as montanhas em frente, embrenhando-nos na selva e
passando por ruínas chachapoyas para chegar à aldeia onde dormiríamos na noite
seguinte. O ritmo de caminhada era acelerado e várias vezes perdemos de vista o
Ronald à nossa frente. Tínhamos de lhe pedir para esperar quando queríamos
beber água ou “ir à casa de banho”, basicamente aquele rapaz era muito
desenrascado mas não tinha muita sensibilidade para turistas, até as nossas
piadas começarem a sortir efeito e no final do dia já estar mais atento às
nossas necessidades de miúdas da cidade.
A região de Chachapoyas é um misto muito específico entre selva e serra
que faz com que dois lados da mesma montanha sejam totalmente opostos em
vegetação. Assim, durante a caminhada desse dia alternámos entre vertentes
escarpadas e despidas e encostas cobertas de mato, subimos e descemos seguindo
o antigo caminho inca utilizado até há três anos atrás por homens e cavalos
para o transporte de café e madeira, almoçámos pão, queijo e fruta no topo de
uma colina com vista para as montanhas verdejantes envoltas em neblina na sua
aura misteriosa. Mais uma vez me senti no Senhor dos Anéis, mas graças a Deus
não tínhamos orcs no nosso encalço. Tivémos bastante sorte com o tempo, não
havia sol nem calor mas também nunca choveu. As subidas eram difíceis e recitei
mentalmente os conselhos do Javier e do Edgar durante o Caminho Inca, e não
voltei a precisar da drunfadinha de oxigénio. Desbravámos mato para seguir o
trilho e visitar as ruínas, e eu sentia-me como o Hiram Bingham à procura de
Machu Pichu ou o Indiana Jones na selva azteca. Não vimos um único ser humano
durante todo o dia, aumentando a sensação de termos aquelas maravilhas naturais
só para nós.
Chegámos à aldeia de Congón, um amontoado de cerca de vinte casas
junto à estrada, seis horas depois da partida e tão cansadas que nem
conseguíamos falar. Ficámos alojadas na casa de uma senhora que aluga quartos
para os caminhantes destes trekkings e inclui o jantar e o pequeno-almoço.
Havia várias crianças ali perto que ficaram alerta com a nossa chegada e
foram-se juntado para nos observar enquanto íamos e vínhamos da casa de banho,
mudávamos de roupa e nos sentávamos a vê-las jogar vóley. Aproximavam-se
tímidas mas curiosas e com o passar das horas começaram a responder às nossas
perguntas e a perguntarem-nos coisas também. Demos uma volta pela aldeia (literalmente
cinco minutos para lá e mais cinco para cá), dividimos uma cerveja na varanda
da casa com vista para a selva, fomos assistir ao jogo de futebol dos rapazes
(e questionávamo-nos como o Ronald conseguia correr atrás da bola depois
daquele dia de caminhada) e voltámos para o jantar. Fomos dormir pouco depois,
creio que eram oito da noite, não sem antes passar revista ao quarto e travar
algumas batalhas mortais com os insectos rastejantes e voadores que lá queriam
dormir conosco.
No valor pago por dia para este tour estão incluídas todas as despesas
de alojamento, alimentação e o bilhete de entrada em Kuelap no último dia, bem
como um plafon de seguro para aluguer de um cavalo no caso de haver algum
acidente e o caminhante já não possa caminhar, já que estes trilhos não são
acessíveis a viaturas. Mas só em caso de acidente. Se os turistas desejarem
incluir um cavalo a certa altura do trekking, isso terá de ser pago à parte.
Para o dia seguinte estavam previstos trinta e um quilómetros de caminhada, do
quais vinte seriam a subir até aos quatro mil metros de altura. Seriam cerca de
cinco horas, e inevitavelmente lembrei-me do Caminho Inca, de Warmiwañusca e da
minha experiência de quase morte. Mas aqui não havia garrafinha de oxigénio,
pelo que eu andei todo o dia anterior a mentalizar-me para a experiência e a
avisar o Ronald que o meu ritmo de subida seria muito, mas mesmo muito lento. À
chegada a Congón ele tinha-nos dito que a caminhada desse dia tinha corrido
muito bem, não diminuindo o nosso receio para o dia seguinte mas encorajando a
nossa determinação. E então ele surpreendeu-nos com a notícia de que teríamos
cavalos para a primeira parte do caminho, precisamente as cinco horas de subida
até ao topo da montanha. Tinha negociado com a agência dizendo que uma de nós
estava aflita dos joelhos e a outra tinha dificuldades de respiração, o que não
foi verdade nesse dia mas teria certamente sido no seguinte se não tivéssemos
os cavalos. E se por um lado eu queria fazer todo o trilho a pé como uma
verdadeira caminhante, por outro lado o receio da altitude e do cansaço não me
deixou ser temerária. E andar tantas horas a cavalo pelo meio da selva seria
uma experiência nova e excitante, e sem custos acrescidos.
Saímos assim de Congón no sábado três de julho às oito da manhã,
montadas no Rafa e no Amaral que nós carinhosamente baptizámos, enquanto o dono
dos cavalos e o Ronald seguiam a pé ao nosso lado, cada um deles guiando um dos
bichotes. Eu já tinha montado duas vezes em passeios campestres de cerca de uma
hora no Gerês e em Cuzco, portanto estar em cima de um cavalo não era uma
novidade total para mim. Mas o nível de exigência agora era completamente
diferente: o caminho era extremamente difícil e em mau estado de conservação,
com pedregulhos enormes no meio que tinham de ser contornados, subidas
íngremes, descidas a pique repletas de cascalho escorregadio e poças de lama
onde os cavalos se enterravam até aos joelhos. Tudo isto envolto em mato mais
ou menos denso, com zonas quase totalmente desimpedidas e outras em que
tínhamos de nos encostar aos cavalos para passar por baixo dos arbustos. Houve
alturas em que o trilho era tão estreito e o precipício tão próximo que eu tive
a certeza de que se o cavalo escorregasse naquele momento seria a última vez
que me víam. Eu tentava minimizar o esforço do Amaral inclinando-me para a
frente e para trás consoante as subidas e descidas, mas isso não evitou o
cansaço extremo e a respiração ofegante do meu amigo, que por várias vezes
tremeu das pernas e resvalou pregando-me sustos de morte mas sem nenhuma
consequência. Eu falava com ele em espanhol, encorajava-o a prosseguir e
agradecia-lhe constantemente, na certeza de que de alguma forma a minha energia
mental haveria de lhe chegar.
Andar a cavalo parece muito giro nos filmes mas não é nada fácil. Estamos
a um metro e meio do chão, doem os joelhos e o rabo, e quando o cavalo passa a
trote é uma tremedeira total por mais que se aperte as pernas contra a barriga
do animal, e dói tudo. Portanto eu nem queria imaginar o que seria andar a
galope desenfreado pela pradaria como os cowboys nos westerns. Para cada
descida eu já sabia que se seguia uma corrida rápida para perder o balanço,
agarrava-me com força e fechava os olhos. O cavalo segue o seu caminho por onde
lhe dá mais jeito não pensando na carga que leva em cima, sejam sacas de café
ou pessoas. Numa das descidas mais íngremes largou a trote e eu fui contra tudo
o que era arbustos e silvas acima do lombo dele durante uma dezena de metros.
Quando travou a fundo ao princípio de outra subida o balanço lançou-me de
fronha contra a sua cabeça e os meus óculos voaram. Atrás vinha o Ronald a
correr esbaforido para o tentar agarrar e quando chegou ao pé de mim com ar
preocupado e os meus óculos na mão eu alternava entre lágrimas e riso. Apanhei
um caguefe daqueles, tinha arranhões na cara e nas mãos e na verdade estava
mesmo assustada. Mas simultaneamente a situação era cómica e não tinha
acontecido nada de grave, porque felizmente não houve nenhum tronco deitado no
meu caminho nem eu tinha caído do cavalo. E a partir dali preparei-me muito
melhor para as descidas, pondo um braço à frente da cara e agarrando-me com a
outra mão, as pernas e muita força ao Amaral. Nunca as expressões “cheirar a
cavalo” e “suar que nem um cavalo” me fizeram tanto sentido como nesse dia.
Nas zonas mais amenas do caminho permitia-me diminuir a atenção e
disfrutar da paisagem, sobretudo quando ganhei mais confiança e comecei a
perceber como podia acompanhar o ritmo do cavalo facilitando a caminhada dele e
a minha. Sentia-me uma verdadeira amazona no meio da selva montanhosa. A
neblina continuava e a vegetação ia diminuindo progressivamente à medida que
subíamos. Chegámos a um lugar chamado Lanche por volta das onze e meia da
manhã, onde parámos para visitar umas ruínas. Descemos dos cavalos e
caminhámos, não sem esforço depois de várias horas com as pernas meio dobradas,
cerca de meia hora no meio de mato denso para chegar a um conjunto de paredes
circulares de pedra que tinha sido uma cidade chachapoya, abandonada com a
chegada dos Incas, agora cobertas de vegetação. Estes inúmeros conjuntos
arqueológicos ainda não estão estudados, conservados nem facilitados ao
público, diminuindo drasticamente a qualidade da visita e o entendimento dos
mesmos pelos visitantes. Simultaneamente, encontram-se num estado tão natural
que não nos sentimos turistas mas sim exploradores, aumentando exponencialmente
a adrenalina e o impacto da visita. Neste sentido, este trekking foi mais
especial do que o Caminho Inca, e mais difícil.
Perto do lugar onde tínhamos deixado os cavalos há uma casa onde vive
um casal de velhotes isolado do mundo e dedicado à agricultura e às suas
vaquinhas. É aqui que se almoça no terceiro dia do tour, e eu questionava-me
onde é que eles iam arranjar os géneros alimentares visto estarem tão longe de
qualquer cidade e acessíveis apenas a cavalo ou a pé. É incrível ver pessoas a
viverem nesta simplicidade. A casa de banho é uma latrina de madeira como as
que tínhamos nos acampamentos de escuteiros, e eu considerei-a um upgrade em relação ao “wc natural” de
que tinha usufruído várias vezes naqueles dias. Os peruanos das montanhas são
simples nos hábitos e nos costumes e isso vê-se em variadíssimas situações,
como não facultarem talheres completos nas tasquinhas porque normalmente só
usam um garfo ou uma colher, tomarem banho de água fria sem dificuldade ou não
se afastarem para “ir à casa de banho” no mato, sobretudo se forem rapazes. Eu
já sabia que convinha caminhar um bocado quando precisava de fazer xixi porque o
Ronald e o rapaz dono dos cavalos (do qual também não recordo o nome) ficavam
ali na conversa sem pensarem que nós não éramos homens como eles e não bastava virar
para o outro lado e já está.
Esse almoço no cimo do monte envolto em neblina foi bastante rápido
mas nutritivo e saboroso, estávamos esfomeados e cansados e não tínhamos muito
tempo, havia que chegar ao topo mais alto até às duas da tarde para o rapaz
poder voltar com os cavalos para Congón antes do anoitecer. Quando montámos de
novo e nos fizémos ao trilho começou a chovinhar e assim continuou durante
bastante tempo. A partir dali já não havia árvores nem arbustos altos que me
arranhassem a cara, mas o caminho tornou-se ainda mais íngreme e foi o troço
mais exigente e lento de todo o dia. Conseguimos chegar lá cima a tempo, e a
paisagem era impressionante. Eu quase caí quando desci do Amaral, os meus
joelhos gritavam e as pernas não aguentavam o meu peso, e demorei algum tempo
até recuperar totalmente as minhas faculdades motoras. Estava nevoeiro e um
frio de rachar naquela altitude e eu tenho perfeita noção que se tivéssemos
subido a pé ainda estaria agora a tentar lá chegar. Foi uma experiência
incrível.
Ali nos despedimos dos nossos amigos de quatro patas e do seu dono e
prosseguimos a pé. Faltavam onze quilómetros a descer pelas montanhas até
Choctamal, onde dormiríamos nessa noite. Apesar das pernas tremeram, os joelhos
doerem e eu temer pelas minhas rótulas, a descida foi amena e fomos na conversa
até lá baixo. O Ronald tinha muitas coisas para contar e inspirava-me aquela
ternura familiar que me inspiram todos os peruanos com as suas qualidades e
defeitos gerais enquanto povo, e particulares enquanto indivíduos. Não se os
pode levar demasiado a sério.
De
novo a vegetação foi aumentando progressivamente. Chegámos à aldeia a meio da
tarde e tivémos um choque com a civilização: um restaurante, um quarto com
camas acolhedoras, um duche de água quente depois de três dias! O negócio era
gerido por um casal simpático com um filho de treze anos e uma avó velhinha e
por ali ficámos o resto da tarde na conversa e a descansar. Nem tivémos energia
para ir dar uma volta pelo povoado. Não houve mais clientes para jantar pelo
que ficámos com o restaurante só para nós. Era sábado à noite, eu e a Claire
estávamos nostálgicas ao pensar nos nossos amigos em Ayacucho que estaríam
certamente em preparações para ir dançar ao Maxx’oh, e então o dono foi buscar
uma aparelhagem de som bastante respeitável e cd’s de música ayacuchana e
montámos ali um salão de baile muito peculiar. Eu não conhecia aquelas pessoas
de lado nenhum, o Ronald conhecia há dois dias e a Claire há pouco mais de uma
semana, mas a simplicidade das situações é o que me faz sentir tão em casa em
qualquer lugar do Perú. Dançámos e cantámos e divertimo-nos imenso, e eu tentava
ensinar alguns passos ao Carlos (o filho) apesar de ele não ter o mínimo
sentido de ritmo. A certa altura entre o cansaço, a emoção e um copo de
Chuchuwasi, um licor típico da selva feito a partir da casca de uma árvore, o
sono levou a melhor e caí na cama refonfunhadamente. Foi uma última noite do
trekking festejada como deve ser, e eu estava mesmo muito feliz. Feliz pela
caminhada, pelas paisagens maravilhosas, pela companhia de viagem, pelo Perú e
pela Vida.
Na manhã de domingo quatro de julho amanhecemos com algum cansaço
pelos festejos da noite anterior e depois do pequeno-almoço fomos integrados
num grupo de turistas para ir de carrinha às ruínas de Kuelap, a quarenta
minutos de Choctamal. Kuelap é uma fortaleza de pedra impressionante no topo de
uma ravina a três mil metros de altitude (diz-se que acumula a maior quantidade de pedra num edifício
pré-colombiano em toda a América Latina), era a capital administrativa e
religiosa do povo Chachapoya até este ter sido dominado pelos Incas, e
chamam-lhe o Machu Pichu do norte do Perú. É o único complexo arqueológico
desta região que está decentemente conservado e aberto ao público, ainda que se
estima que apenas três porcento esteja estudado até agora. O impacto de chegar
ali de carro depois de três dias de trekking foi drasticamente reduzido
comparativamente a chegar lá a pé, mas não existe nenhum trilho fora da estrada
e pelas montanhas, reduzindo o interesse da caminhada, e a distância de
Choctamal implicaria esticar o tour para mais um dia. Quando coloquei esta
questão primordial à Christell, na agência, foram estes os argumentos que ela me
apresentou e que não me convenceram muito. Na minha opinião isto foi uma perda
enorme de interesse, sendo Kuelap o ponto alto e o objectivo de todo aquele
passeio tortuoso e sofrido, ainda que olhando para trás confirmo o que já tinha
sentido ao chegar a Machu Pichu: quando passa a emoção da chegada e o impacto
daquela primeira visão que nos tira o fôlego, as mais intensas recordações que
ficam são do caminho, não do lugar para onde vamos. E em Kuelap, tal como em
Machu Pichu, a visita guiada pelo Ronald foi interessante mas não tão
emocionante, e enquanto eu me esforçava para reter na memória aquelas muralhas
pedregosas imponentes e dominadoras da paisagem em redor, na verdade não
conseguia fugir das imagens mentais dos dias anteriores: pescar trutas,
descubrir ruínas cobertas de mato, trepar troncos caídos, rodear pedregulhos,
agarrar-me ao Amaral, borboletas gigantes, montanhas verdejantes envoltas em
neblina. Tal como no Caminho Inca.
Caminho para Kuelap. Fotos da Claire.
A ravina de Kuelap vista ao longe.
A muralha.
A entrada principal
Uma (muito) pequena família de quatro dias: Claire, Ronald e eu.
Regressámos a Choctamal para um almoço tardio, despedimo-nos do
Carlitos, dos seus pais e da avó e regressámos a Chachapoyas na carrinha com o
mesmo grupo de turistas. Observei a paisagem já com nostalgia. Mais uma vez
constatei que também aqui os Andes são diferentes de si mesmos nas outras
regiões onde existem. Aqui na província de Amazonas os vales são estreitos mas
planos e todos serpenteados por rios que alagam as suas margens, contribuindo
para a maior produção de arroz de todo o Perú e recordando-me as várzeas do
Ribatejo, mas com muralhas verticais e rochosas em redor. A vegetação alterna
drasticamente como já vos contei acima, entre mantos de árvores, zonas de
arbustos ralos e escarpas completamente despidas.
Chegámos a Chachapoyas ao final do dia e voltámos ao hostel do Sr.
Ricardo. Tivémos preguiça para tomar banho, e depois de um chá de folhas de
coca saímos para comer uma pizza num bar gerido por um rapaz do País Basco,
tendo encontrado pelo caminho o Ronald com o irmão mais novo que também é guia
e acabava de regressar com um casal de franceses do mesmo trekking que nós
tínhamos feito. Apesar de ser uma despedida provavelmente para a vida, em
viagem conhecemos pessoas com quem ganhamos familiaridade por um par de dias e
depois o mais certo é nunca mais voltarmos a encontrar-nos, foi tudo muito
rápido e nem deu tempo para lamechices. E se o verdadeiro viajante tem a mente
aberta para os “olás” e o espírito tranquilo para os “adeuses”, eu ainda fico
com o coração apertado nas despedidas. Estas experiências de caminhar vários
dias isolada do mundo com um grupo pequeno de pessoas que inevitavelmente se
tornam uma pequena família tem tanto de intenso como de efémero, e às vezes
pergunto-me como gerir todas estas pessoas que eu vou conhecendo e ganhando
afecto e perdendo depois. Fazem todas parte da minha vida, das minhas
experiências e recordações, do meu Ser, e ficarão todas gravadas em mim desde a
minha infância à minha velhice.
Nessa noite dormimos cedo e no dia seguinte tomámos um pequeno-almoço abençoado
num café catita perto da Plaza de Armas, antes de eu apanhar o autocarro da
Moviltours para a viagem de vinte e três horas de regresso a Lima, e a partir
dali a Claire seguia sozinha pelo Perú abaixo por mais três semanas antes de
regressar a França. Foi a despedida final, mais dois corações apertadinhos e
lágrimas no canto do olho. Obrigada PachaMama pela companheira de viagem que me
providenciaste generosa e inesperadamente (e que curiosamente vive perto dos
meus primos na Normandia), este não foi um adeus para a vida porque a
probabilidade de nos revermos até é grande. Mas o fim de uma viagem é sempre o
fim difícil de um tempo único e irrepetível, e apesar de eu ter de regressar a
Lima por um bom motivo – a minha operação aos olhos – não tinha vontade nenhuma
de deixar de viajar, e ainda lá estaria agora não fosse pelos valores
familiares que mais alto se levantam.
De facto, o que eu quero é viajar.