Por estes dias fez um mês que
fui de viagem pela costa norte do Perú para o Ano Novo, e andei a adiar este
post porque sabia que ia ser longo. Foram duas semanas de mar, sol e calor em
óptima companhia que me encheram os olhos, o corpo e a alma do verão peruano e
do Oceano Pacífico, e revisitar agora esses dias para vo-los contar traz-me recordações
simultaneamente saborosas e nostálgicas. O regresso foi traumático, como seria
de esperar.
Eu e a Celsa saímos de Ayacucho
no dia vinte e sete de dezembro à noite, para nos encontrarmos em Lima na manhã
seguinte com as nossas companheiras de viagem: a Tânia, que é limenha mas vive aqui
em Ayacucho; a sua amiga Carolina que nós ainda não conhecíamos; a Chavi,
americana que esteve cá a estagiar durante uns meses e foi embora poucas
semanas depois de eu chegar, e que regressou para umas férias e para concluir o
projecto; e a Sara, também americana, que também esteve a estagiar em Ayacucho
mas já terminou e agora está a escrever a tese em Lima. Passámos dois dias na
capital e aproveitámos para passear, comprar coisas que na terrinha são
objectos de luxo (como protector solar e um bikini), tomar um café no aprazível
bairro de Barranco (a zona artística da metrópole) e fazer uma visita rápida
aos meus amigos combonianos para lhes desejar bom ano e despedir-me dos
finalistas que no princípio deste ano regressaram ao seu país. No dia vinte e
nove apanhámos o bus nocturno para Casma, seis horas a norte de Lima, onde
tínhamos alugado uma casa para o Ano Novo na praia de Tortugas.
Tortugas é uma colónia balnear popular
entre os limenhos mas desconhecida dos turistas. Tem poucos hosteis e muitas
casas para alugar, e de facto estava cheia de peruanos que ali vieram para os
dias de Ano Novo, época alta do verão no hemisfério sul. Estrangeiros não vimos
nenhum, à excepção de um senhor espanhol dono do hostel onde tomámos o
pequeno-almoço na manhã em que chegámos. A praia fez-me lembrar um pouco S. Martinho
do Porto, porque também está disposta em redor de uma baía rodeada de colinas.
Mas neste caso as colinas são dunas de areia e terra, porque no Perú a praia é
no deserto. Esta paisagem de contraste entre deserto e mar afectou-me na minha
primeira viagem, à Reserva Natural de Paracas em Novembro (a roadtrip,
lembram-se?), e continua a exercer sobre mim um fascínio indescritível de cada
vez que vou à costa. As dunas são altíssimas e impressionantes, e são quilómetros
e quilómetros de areia vazia, atravessada pelo alcatrão da Panamericana (autoestrada
que segue toda a costa americana do Pacífico desde o Alaska ao Chile,
atravessando dezoito países).
A baía de Tortugas rodeada de dunas
A praia
A nossa casinha minúscula,
constituída por uma sala-quarto-cozinha (onde dormimos amontoadas entre um
beliche e colchões insufláveis), uma casa-de-banho e uma varanda deliciosa, era
a mais alta da vila, a meia encosta nas dunas. Estava orientada para a saída da
baía e foi um regalo acordar esses dois dias e ir para a varanda apanhar a
brisa e ver aquela vista logo pela manhã. Doía-me o coração de saudades do mar,
e ao vê-lo apercebia-me disso com muita intensidade! Como quando não vemos um
amigo há muito tempo e nos habituamos à sua ausência, mas depois reencontramo-lo
e questionamos-nos como pudemos viver tanto tempo longe dele.
A nossa casa (a parte de cima, em madeira)
A vista da varanda
Os nossos dias em Tortugas foram
de um ócio delicioso: acordar e tomar um pequeno-almoço de luxo na varanda, ir
para a praia, almoçar tarde, dormir a sesta, voltar para a praia, cervejas ao
pôr-do-sol na varanda, cozinhar petiscos deliciosos para o jantar e ficar à
conversa. Foi incrível a quantidade de comida que conseguimos comprar no
mercado de Casma por um valor irrisório para os três dias. Em Tortugas não
havia muito que fazer à noite, os poucos bares existentes estavam apinhados de
peruanos ao som de reaggaton, e sendo um grupo de seis não sentimos muita
necessidade de socializar na primeira noite.
Na véspera de Ano Novo eu estava eufórica. As
passagens de ano são sempre momentos marcantes para mim por causa do meu
aniversário, e sempre foi importante ter um plano delineado para essa altura.
Passámos o dia na praia de San German com um calor tórrido e eu não estava a
conseguir conceber que era o último dia do ano, trinta e um de dezembro, e eu
estava a tomar banhos de sol e de mar. Passei o dia todo com uma espécie de
dissonância mental, a tentar localizar-me constantemente, e a pensar que no dia
seguinte ia fazer vinte e nove anos. Vinte e nove. Cum catano, o último dos
vinte.
Boa companhia: Celsa, Sara, Chavi, Tania, Carolina e eu
Nessa noite abrimos o queijinho
e o presuntinho que a minha querida mãezinha me tinha mandado (cortesia do Pe.
Sérgio, dos combonianos, que os trouxe no final de novembro aquando da sua
visita a Portugal) e foi uma festa, sobretudo para mim e para a Celsa que quase
chorámos ao sentir aqueles sabores tão ibéricos que não existem nem de longe em
Ayacucho. Passámos imenso tempo a cozinhar e a rir e a comer, festejámos a
passagem de ano em Espanha, depois a passagem de ano em Portugal, e pouco antes
da meia noite peruana descemos à praia para festejar a entrada em dois mil e
treze neste fuso horário.
A Chavi e a Tania de volta dos nossos pitéus portugueses
Pouco antes da meia noite peruana: Tania, Chavi, Carolina, Celsa, Sara e eu.
Como já vos tinha contado no
post sobre o Natal, aqui no Perú não há fogos de artifícios institucionais. Os
foguetes são comprados pelas pessoas que os lançam directamente do seu quintal
ou da sua varanda. Em Tortugas, isto resultou num espectáculo impressionante
com a baía toda rodeada de vários fogos de artifícios ao mesmo tempo. Foi
emocionante! Enquanto isto nós fazíamos o nosso próprio ritual de boas entradas,
contando cada uma o acontecimento mais marcante do seu ano passado e o seu
maior desejo para o ano novo, agradecendo a PachaMama as suas bençãos.
Feliz Ano Novo!
Ao final da tarde a Sara tinha
andado a indagar pela vila se alguém ia regressar a Lima no dia seguinte, para
arranjar boleia para ela e para a Carolina, que tinham de voltar. Não só
conseguiu viagem à borla como também conheceu um grupo de limenhos que também
estavam a alugar casa ali e nos convidaram para ir festejar com eles a passagem
de ano. Então depois da meia-noite decidimos romper o nosso estado anti-social
e atravessámos a vila que estava em polvorosa com a multidão de gente a
festejar dois mil e treze nos bares, na praia e nas casas de portas abertas.
Não há uma discoteca em Tortugas, e não nos fez falta nenhuma, porque não
faltou música e animação.
No dia um de janeiro acordei com
Parabéns e outro pequeno-almoço de luxo na varanda. Ficámos na ronha e só à
tarde nos activámos para ir um bocadinho à praia antes das arrumações e
limpezas, pois nessa noite íamos embora. A Sara e a Carolina foram a meio da
tarde com a sua boleia para Lima, e ficámos as quatro que seguimos viagem para
o norte: eu, a Celsa, a Tânia e a Chavi. Fomos brindadas com o primeiro
pôr-do-sol espectacular daquelas férias e seguimos de táxi para Casma, onde
apanhámos um combi para Chimbote, e daí bus nocturno para Piura, a oito horas
de distância, iniciando a primeira maratona rodoviária da nossa viagem. Durante
a noite estive bastante tempo acordada a ver o deserto rolar pela minha janela,
banhado pelo luar de lua cheia.
Piura é a segunda capital de
província mais a norte do Perú (a primeira é Tumbes, junto à fronteira com o
Ecuador) e é uma típica cidade da costa desértica peruana, cheia de pó e vazia
de interesse. Daqui decidimos ir à praia de Colán, que a nossa guia peruana
privada (a Tânia!) sugeriu. Para lá chegar tivémos de apanhar um bus para a
vila de Paita, onde não nos demorámos de tão feia que é, e depois um táxi.
Foram cinco meios de transporte para vir de Tortugas até aqui.
Colán estava a acordar das
festanças do Ano Novo e quando chegámos tivémos um choque com a quantidade de
lixo que havia na praia. Por sorte encontrámos um hostel de estilo hawaiano que
tinha acabado de abrir e ficámos aí um bom bocado a tomar o pequeno-almoço e a
recuperar do cansaço da viagem. Ao longo da manhã a praia foi limpa e acabou
por revelar-se um lugar lindíssimo, era muito comprida e de areia fina como as
praias da Caparica à Fonte da Telha, e estava vazia, só para nós. Atravessámo-la
de uma ponta à outra, vimos gaivotas, pelicanos, alforrecas gigantes, uma
moreia e uma carapaça de tartaruga vazia. A areia molhada ficava coberta por
umas estranhas partículas douradas que pareciam ouro fino e brilhante quando as
ondas vazavam. E pelo caminho parámos para apanhar sol e tomar banho. Banho de
mar e de protector solar, factor cinquenta por favor, que no Perú há um buraco
na camada de ozono e o sol queima mesmo debaixo dos toldos.
A nossa maratona rodoviária
recomeçou à hora de almoço, com taxi de regresso a Paita, combi para Sullana e
finalmente bus para Mâncora, a capital do verão e da movida na costa norte do
Perú, onde chegámos à hora de jantar e onde dormimos essa noite num hostel por seis
euros por pessoa em quarto quádruplo com casa de banho privativa (priceless!!).
Mâncora é a típica vila de mar que enche no verão. Fez-me
lembrar Albufeira, com a diferença de aqui não haver ingleses e alemães e haver
colombianos, equadorenhos, chilenos e argentinos de rastas a vender artesanato
na rua. Mâncora é a capital hippie da costa norte do Perú! Mas é demasiado comercial.
Há mais bancas de artesanato que turistas e há mais turistas que peruanos, a
praia é minúscula e está apinhada, e à noite os bares que enchem a rua
principal competem para ter a música mais alta (tal e qual a Praia da Oura, mas
com raggae e raggaton). Ficámos aqui uma noite, tomámos umas cervejas depois do
jantar mas fugimos à movida, e na manhã seguinte fomos para Punta Sal depois do
pequeno-almoço, a nossa principal refeição de viagem e ritual indispensável das
nossas manhãs.
Mäncora pela manhä
Punta Sal é A PRAIA. A vinte minutos de combi de Mâncora,
é uma vilazinha pacata com várias casas para alugar mas poucos hostéis e restaurantes,
e a praia é um areal extenso a perder de vista, com areia branca, ondas
pequenas e água morna. Estava cheia de famílias em férias e não avistámos
turistas. Decidimos alugar um toldo porque não tínhamos chapéu e passar o dia
ao sol era pedir queimaduras de terceiro grau. Instalámo-nos de mochilas e
bagagens debaixo do nosso toldo e ficámos naquele pedaço de paraíso até meio da
tarde. A praia era tão extensa que quando decidimos caminhar até ao fim
descubrimos que ao cabo de uma hora só tínhamos chegado a meio, e voltámos para
trás.
De Punta Sal queríamos continuar
para norte e ir à vila de Zorritos, a cerca de quarenta quilómetros, porque nos
tinham dito que a praia aí era bonita e no nosso guia encontrámos indicação de
um camping ecológico que ficámos com curiosidade de conhecer. Como andávamos
com a tenda às costas e em modo low-cost, decidimos que essa iria ser a nossa
primeira noite de campismo. A estrada que passa em Punta Sal é a que vai de
Mâncora a Tumbes e tínhamos indicação de que na berma paravam combis e que
podíamos subir para sair em Zorritos, que fica em caminho. O que não nos
disseram foi que os combis saem cheios de Mâncora e que já não param em Punta
Sal. Estivémos assim um bom pedaço de tempo carregadas com as mochilas, à beira
da estrada, a vê-los passar. A alternativa era ir de táxi, mas o preço era tão
exorbitante que decidimos esperar e só aceitar essa possibilidade quando começasse
a ficar de noite e já estivéssemos desesperadas.
PachaMama zela por nós e desde
que cheguei ao Perú que constato essa inegabilidade com muita frequência.
Depois de muitos combis a passar por nós e a inquietação a crescer, decidimos
começar a pedir boleia. Éramos quatro, o que nos dava segurança, e assim
pusémos o dedo no ar a tudo o que era jipe ou camião. A maioria das viaturas
que passavam eram famílias e ninguém parava. Também não estava a resultar! Até
que vimos sair de Punta Sal uma pick-up com um casal que respondeu ao nosso
apelo e foi tal a alegria quando pararam e nos chamaram que desatámos a correr
com as mochilas e literalmente lhes invadimos o porta-bagagens e os assentos
traseiros. São peruanos, chamam-se Mariano e Melisa e andavam, tal como nós, a
correr a costa norte do Perú, mas de carro. Foram SUPER AMÁVEIS, ficaram
contentes por conhecer outros viajantes, e ajudaram-nos a encontrar o camping
que ficava fora de vila e tivémos de andar às voltas a perguntar para o encontrar.
E quando chegámos à Casa Grillo Tres Puntas ficámos todos tão maravilhados que
a Melisa e o Mariano decidiram alterar os seus planos de ir dormir a Tumbes e
passaram aquela noite ali conosco!
A vida é uma questäo de atitude :)
Melisa, Mariano, Celsa, Tania, Chavi e eu no primeiro pör-do-sol inesquecível em Zorritos
A Casa Grillo Tres Puntas é um conjunto
ecológico low-cost, propriedade de um senhor espanhol de meia idade
completamente chalado da cabeça, que vive no Perú há vinte anos e na época alta
tem a colaboração da sua irmã, igualmente louca. São do mais divertido que se
possa imaginar e criaram em Zorritos um micro-cosmos de tranquilidade
inesquecível. O terreno enorme à beira-mar está polvilhado de algumas poucas estruturas
construídas com troncos, canas e madeira, onde se situam a recepção, o
restaurante e a cozinha, as casas de banho e os quartos (fez-me lembrar as
construções escutistas, mas com um pouco mais de conforto). O restante espaço
está ocupado por pequenas áreas de campismo cobertas com telheiros de palhinha para
as tendas, e um bar de praia no mesmo material. As camas de rede são uma
constante na paisagem. Todo o ambiente está impregnado de respeito pela
natureza, poupança e aproveitamento dos recursos naturais e fraternidade
humana, e o complexo é um contínuo work
in progress (na época baixa aceitam voluntários para ajudar na construção a
troco de alojamento, alimentação e uma semanada, além da experiência de viver
durante um tempo neste pequeno paraíso terrestre). No restaurante come-se
peixinho fresquinho e gaspacho delicioso, e à noite há fogueira junto ao bar da
praia, e a fraca iluminação permite ver o céu completamente estrelado. Só
faltou música reaggae para completar o meu sonho de uma festa na praia com
fogueira.
Zona de campismo
O bar de praia
O restaurante
Depressa a nossa intenção de ficar uma noite esticou para
duas e passámos um dia de relax total nas camas de rede, a conversar, a ler e a
tomar banho no mar de água azul e quente. Entretanto chegou a nossa amiga
Nathi, também limenha a viver em Ayacucho, que veio com o namorado (o Walter)
passar férias à costa norte e aproveitou estar ali perto para vir passar uma
noite conosco em à Casa Grillo. Nunca estamos sós quando estamos a viajar! O
pôr-do-sol deste dia foi ainda mais espectacular do que o do dia um de janeiro,
e eu senti-me abençoada e sortuda por poder acampar e passar um dia da minha
vida num lugar tão paradisíaco. Estávamos todas muito emocionadas.
Foi com muita pena que na manhã seguinte arrumámos a
tralha, nos despedimos dos senhores espanhóis e regressámos a Mâncora. A nossa
pena era grande também porque a viagem a quatro estava a terminar: a Tânia e a
Chavi viajariam nessa noite para Lima, porque daí a dois dias tinham de regressar
ao trabalho em Ayacucho. Eu e a Celsa tínhamos mais uma semana de férias e
íamos seguir viagem para Trujillo, a dez horas a sul de Mâncora, a terceira
cidade do Perú. De seis estavamos a passar progressivamente a duas.
Despedida de Zorritos: Nathi, Celsa, Chavi, Tania e eu.
Vagueámos as quatro por Mâncora durante a tarde com um
peso no coração, fomos ao mercado comprar comida para a viagem, vimos e revimos
as centenas de barraquinhas de artesanato e tomámos a última cerveja juntas à
beira-mar. A Tânia e a Chavi partiram às cinco, nós teríamos de esperar até às
nove, e por esta altura eu sentia que me tinham amputado os braços. É incrível
a facilidade com que nos habituamos a viajar em boa companhia e como fica um
buraco vazio quando essa companhia se vai. Dinâmicas de interacção pessoal que
se criam, em que cada elemento tem o seu espaço específico no seio do grupo e
cada personalidade contribui para o êxito da convivência. Dentro de uma semana
iríamos reencontrar-nos as quatro em Ayacucho, mas por agora seguíamos viagem
separadas e isso estava a pesar. Bom, viajar tem destas coisas e há que ter mente
aberta para os olás e espírito tranquilo para os adeuses.
Essas horas de espera até ao autocarro nocturno para
Trujillo foram intermináveis e já conhecíamos a vila de uma ponta à outra.
Estávamos aborrecidas e cansadas de cirandar, pelo que decidimos abancar na
pracinha central e simplesmente esperar que o tempo passasse – viajar também
tem destas coisas e há que ter paciência e apreciar o momento. A nossa
paciência acabou por ser recompensada porque a praça começou a encher-se de
crianças a brincar ao ar morno da noite, e a certa altura chegou um grupo de
palhaços argentinos que improvisa circo de rua e montaram ali um espectáculo
super cómico que nos fez voar as horas até ser tempo de apanhar o bus. Obrigada
PachaMama, pela feliz coincidência, mais uma vez!
O circo ambulante argentino Mepan
Nas viagens de autocarro que temos feito nunca houve
contratempos. Já viajámos em doze companhias de longa distância diferentes,
fora os combis e autocarros urbanos, e nunca tivémos problemas graves. Mas em
viagem tudo pode acontecer e a sorte não pode ser constante, porque a PachaMama
tem muitos viajantes para abençoar nesta meca sul americana do turismo
económico. E há que estar preparado para qualquer imprevisto.
A companhia com que viajámos de Mâncora para Trujillo,
Turismo El Sol, é uma empresa local e não tínhamos qualquer referência sobre os
seus autocarros, à semelhança de muitas outras pequenas companhias em que já
viajámos. Como era a única que ainda tinha lugares disponíveis naquele sábado à
noite, não tivémos alternativa. E nem estávamos inquietas quanto a isso, porque
a esta altura viajar em autocarros nocturnos já se tinha tornado para nós tão
natural como a nossa sede. Mas assim que subimos ao bus percebemos
inequivocamente que tínhamos sido enganadas, juntamente com os restantes cinquenta
passageiros, metade dos quais turistas surpreendidos como nós. O autocarro não
tinha assentos semi-cama como é normal nas longas distâncias no Perú, não tinha
WC nem sequer ar condicionado. Eu comecei logo a ver a minha vida a andar para
trás: dez horas em assentos normais de expresso Lisboa-Porto, com a minha
bexiga de idosa (quem me conhece sabe que rego as flores de hora a hora) e com
o bafo quente da noite no deserto. Muito bom. Começou o riso nervoso e ainda a
procissão estava no adro. Ia ser uma longa noite.
Durante os primeiros quilómetros acordámos muitas vezes
com paragens imprevistas para subir mais gente para o bus, que viajava no
corredor por não haver assentos livres (isto não é suposto acontecer nas longas
distâncias). Depois entraram polícias armados com metralhadoras e fizeram uma revista.
Nesta altura eu já não tinha posição no assento e já estava apertadinha e não
estava a ver como ia conseguir resolver o meu problema. Mas isso era porque
ainda não sabia o que estava para vir: duas horas depois de sairmos de Mâncora
rebentou um pneu do autocarro e ficámos empanados à beira da estrada no meio do
deserto, longe de qualquer civilização e sem iluminação pública. Os dois
motoristas atarefavam-se à volta da roda gigante, demoraram imenso tempo para
tirar o pneu feito em fanicos e parecia que não estavam a conseguir colocar o subselente.
Várias pessoas aproveitaram para “ir à casa de banho” no meio do deserto
estrelado e assim fizémos também eu, a Celsa e a Trina, uma rapariga inglesa
que estava a viajar com o namorado australiano, o surfista Dave. O pneu não
dava sinais de querer prestar serviço, ninguém nos dava nenhuma explicação, e
recordo este momento de dúvida total e desespero cómico em que o Dave
pronunciou a frase da noite: “Funny night at the desert, uh?” Não fazíamos a
mínima ideia de quando íamos sair dali.
Duas horas depois do incidente
passaram dois autocarros da mesma companhia do nosso e recolheram os
passageiros desafortunados. Nós seguimos no segundo, que era da mesma qualidade
do anterior e estava igualmente à pinha. Conclusão: viajar sentados no
corredor. Não tenho palavras para descrever com precisão o inferno que foi esta
viagem. Cerca de vinte pessoas atulhadas no corredor do bus, sentadas no chão,
sem poder esticar as pernas ou encostar as costas, durante oito horas até
Trujillo. Primeiro começou por me doer tudo, começando pelas costas e passando
às pernas, e depois deixou de me doer porque estava toda dormente. Atrás de mim
a Celsa quase teve um ataque de ansiedade pelo pouco espaço vital disponível, e
se eu não estivesse numa fase tão tranquila e “peace and love” da minha vida
tinha desatado a chorar. Mas estamos no Perú, coisas destas supostamente
acontecem com mais frequência do que a nossa sorte tem ditado, e eu só pensava
na bela história que teria para contar. Se chegasse viva ao destino.
Mas sabem o que se diz: uma desgraça nunca vem só. Como
se não bastasse o pneu furado do primeiro autocarro, confirmámos a falta de
manutenção da frota desta companhia quando o motor do segundo bus avariou.
WHAT?? Devem estar a gozar, não pode ser verdade! Dois autocarros na mesma
noite? Qual era a probabilidade?? Mais uma vez parados enquanto os motoristas
tentavam consertar o motor e telefonavam a não sei quem a perguntar se era muito
grave retirarem um cabo qualquer e ligarem directamente não sei que parte do
motor a outra. Eu teria preferido não perceber espanhol para não perceber que
os homens não tinham a mínima ideia do que estavam a fazer. E de madrugada no
meio do deserto, não podíamos fazer mais que sair para esticar as pernas e as
costas e rezar para que aquele pesadelo acabasse depressa.
Uma hora depois o motor acordou (eu preferi fingir que
não havia motivos de preocupação com questões de segurança rodoviária) e seguimos
viagem apertados no corredor. De algum modo consegui dormir com a cabeça
encostada aos joelhos encolhidos. Não sei como foi anatomicamente possível, mas
dormi. À minha frente, algumas pessoas viajaram de pé toda a noite por não
haver mais espaço para sentar. Eu olhava para elas entre sonos atribulados e
sentia-me ligeiramente sortuda.
De manhãzinha parámos na cidade
de Chiclayo e metade dos passageiros desceu, o que permitiu aos desafortunados
ganhar um assento para as restantes TRÊS HORAS de viagem até Trujillo.
Entretanto começou a entrar um sol esplendoroso pelas janelas sem cortinas,
trazendo o seu calor tórrido para o qual não havia combate de ar condicionado,
e quando chegámos ao nosso destino às dez da manhã (três horas de atraso…) eu
estava capaz de bater em alguém. Foi o pior amanhecer em viagem que já tive. Vimos
de longe o Dave e a Trina entrarem no primeiro táxi livre que lhes apareceu, e
apesar do nosso desejo louco de fugir dali e ir sem mais delongas para a praia,
decidimos que os incidentes daquela noite tinham sido muito graves e mereciam
uma reclamação. Eu estava tão furiosa que tinha era vontade de ir directamente
à polícia.
Tenho de referir que nenhuma de
nós tinha a ilusão de que a reclamação fosse servir para alguma coisa. Estamos
no Perú, e se estas coisas não funcionam bem nem em Portugal, quanto mais aqui.
Mas era a única coisa que podíamos fazer e tínhamos de descarregar a nossa
frustação em alguém. Pois o empregado que nos atendeu era um mono idiota sem
cérebro dentro do crânio e deu-nos a desculpa perfeita para entabular uma
discussão digna de filme. Enchemos duas páginas do livro de reclamações apesar
do tom de gozo contínuo com que fomos brindadas e eu ainda ameacei com a
denúncia na polícia. Claro que não serviu para nada, e foi desconcertante ver
esse mesmo livro cheio de histórias desagradáveis de passageiros anteriores.
Muito bom!
Corremos dali e apanhamos um
combi para Huanchaco, uma vila balnear a quinze quilómetros de Trujillo, e
quando vi o mar ao longe comecei a relaxar e esforçar-me para esquecer a noite
vivida e fingir que tinha sido só um sonho mau. Estávamos a chegar à praia, era
domingo, estava calor e a vida era boa. As minhas costas berravam-me
incongruências e eu prometi-lhes incansavelmente que me ia deitar na areia
assim que pudesse, mas para além disso e da tensão acumulada não tinha
acontecido nada de verdadeiramente grave, pelo que havia que aproveitar o resto
da viagem que ainda tinha muito para ser inesquecível.
E foi. Huanchaco é um lugar GE-NI-AL. A vilazinha está
toda estendida à beira mar, ao longo de vários quilómetros de areal, hosteis,
bares, restaurantes, vendedores de artesanato ambulantes, muitos veraneantes peruanos
e viajantes estrangeiros, e sobretudo SURFISTAS. Huanchaco é uma das mecas do
surf peruano e assim que chegámos começámos a sentir a adrenalina das ondas,
antevendo as aulas com que vínhamos sonhando desde Ayacucho. Encontrámos
alojamento no hostel da Sra. Solange, uma velhota mega surda com quem era
preciso gritar para nos entendermos (e pelo que descubrimos mais tarde, uma
relíquia humana de Huanchaco) que nos deixou um quarto com casa de banho
privativa por dez soles por noite a cada uma (o equivalente a três euros). A
ideia era ficar aqui duas noites.
Nessa tarde descubrimos um restaurante barato com óptima
comida de peixinho fresco e atendimento super amável (um bálsamo para as nossas
almas magoadas das insolências anteriormente suportadas), passeámos pela vila, fomos
ao mercado (outro ritual incontornável das nossas viagens), estivémos na praia
até começar a ficar frio (em Huanchaco levanta-se um vendaval ao fim da tarde,
independentemente do calor que esteja durante o dia) e corremos as inúmeras
escolas de surf à procura dos melhores preços para as aulas. Acabámos por decidir-nos
pela primeira onde tínhamos entrado, muitas vezes a primeira impressão é a mais
marcante, e reservámos uma aula para o dia seguinte. Escola: The Wave;
professor: Carlos, um peruano de trinta e cinco anos muito fixe, super amável e
muito paciente, como haveríamos de comprovar mais tarde. Preço: quarenta soles
por cada aula de duas horas (cerca de doze euros), com possibilidade de usar o
equipamento o resto do dia. Na loja conhecemos também o irmão dele, Eduardo, os
outros rapazes que trabalham com eles, e a Canela, uma ex-cadela de rua super
meiga, adoptada pela The Wave e conhecida em toda a vila. Estavam lançados os
dados para dois dias brutais da nossa viagem pela costa norte do Perú.
Nessa noite não tivémos fome para jantar, em virtude do
almoço tardio, e decidimo-nos por umas cervejas num bar com bom ar à beira mar.
O dono era um velhote americano, ficava eufórico com cada estrangeiro que
entrava e ao ver-nos duas meninas sozinhas veio assegurar-nos que só
precisávamos de chamá-lo caso alguém nos viesse incomodar. A juntar ao bom
ambiente era momento de happy hour pelo que pudémos pedir cocktails típicos do
Perú que normalmente não bebemos porque nos saem fora do orçamento, a preço de
dois por um.
Estávamos nós nesta amena cavaqueira de conversas
filosóficas sobre a vida, as experiências, as viagens, a crise na Europa e a
dificuldade de vida que os nossos dois países apresentam neste momento, quando
vemos entrar no bar os nossos companheiros da viagem do inferno: o Dave e a
Trina. Reconhecemo-nos mutuamente com emoção e eles sentaram-se à nossa mesa.
Vinham acompanhados do Josh, um surfista americano que tinham conhecido no
hostel. Aceitaram com agrado a nossa boleia na happy hour dos cocktails e
ficámos várias horas à conversa, interrompidos de quando em quando pelo dono
americano que nos vinha perguntar que música queríamos ouvir, e que a certa
altura se fartou de aceitar pedidos e monopolizou a playlist com a sua banda
favorita: ABBA. Acompanhava a música com canto e baile. Uma visão demasiado
gráfica e inesquecível (oh my god). Já era tarde quando nos lembrámos que no
dia seguinte tínhamos aula de surf bem cedinho, e chegámos à conclusão de ter
uma excelente noção de oportunidade, visto termos decidido fazer noitada pela
primeira vez na nossa viagem justamente na véspera de uma aula de surf.
Esperteza saloia!
A adrenalina do surf é indescritível por palavras. A
energia da onda debaixo da prancha é tão forte que várias vezes senti que ia
depressa demais e antevi com clareza gráfica o meu tombo de chapa na água. De
cem vezes que subi à prancha caí noventa e nove, e foram incontáveis as ondas
que comi na cara. Para dez segundos em cima das ondas é preciso remar dez
minutos contra elas, e ao fim de duas horas de aula já me tinham caído os
braços de exaustão. E esfolei o queixo contra a prancha numa das quedas. Tive
medo várias vezes, sobretudo quando vinham umas ondaças maiores e eu me
agarrava com toda a força à prancha para não ir enrolada e desatava a gritar
(por questões de educação não posso reproduzir aqui). Consegui surfar UMA onda.
E valeu tão a pena! Éramos quatro alunas ao mesmo tempo, e o Carlos revelou-se
um professor paciente e motivador apesar da minha evidente falta de jeito. Foi
tudo uma emoção, desde vestir o fato, carregar a long-board enorme pela praia, praticar na areia, nadar até fora de
pé, atravessar as ondas a direito agarrada à prancha, descansar nos momentos
calmos com a cara contra a prancha a sentir o calor do sol, deixar de ter medo
de cair, e por fim apanhar uma onda. Foi uma experiência inesquecível e consigo
perceber perfeitamente os surfistas viciados nesta coisa.
Depois da aula tínhamos um fome de leão e fomos almoçar
outra vez ao restaurante simpático da véspera. A ideia era dormir uma sesta na
praia e depois ir buscar os fatos e as pranchas e ir outra vez para dentro de
água. Na praia encontrámos o Josh, o surfista americano, que para o outro lado
onde as ondas eram maiores, mas amavelmente se voluntariou para nos ajudar a apanhar
umas ondas. Mas foi em vão. À tarde a corrente estava muito mais forte e as
ondas muito maiores, e passámos meia hora de esforço contínuo a tentar passar a
barreira da rebentação. Esforço inútil. Quem ficou totalmente rebentada fui eu,
e fui a arrastar-me para deixar o equipamento na escola. Não foi uma boa ideia.
Só que isto do surf é um vício e já estava a nascer no nosso espírito a ideia
de ter outra aula com o Carlos na manhã seguinte.
À noite fomos outra vez de cervejas com o Josh, o Dave e
a Trina e conhecemos o hostel Naylamp, onde eles estavam hospedados, que tem
quartos e espaço para campismo, e também tem camas de rede, cozinha para os
hóspedes e duches de água quentinha. Uma espécie de Casa Grillo mais urbana e
menos rústica.
Na manhã seguinte repetimos a aula de surf e a mim correu
pior que a primeira. O esforço da tarde anterior paguei-o caro com um extremo
cansaço físico e tive de desistir antes do fim. Já não tinha braços, já não era
pessoa. A frase “Rema, rema, ahora llevanta!” ficou-me gravada nos ouvidos, e
nos dias seguintes não tinha força sequer para cortar a comida. A dor de braços
durou-me quase duas semanas. Mas a recordação da água na cara e da energia da
onda debaixo da prancha marcou-se indelevelmente no meu espírito.
Entretanto já tínhamos decidido
alargar a nossa estadia em Huanchaco por mais uma noite (adoro mudanças de
planos!) mas quando o comunicámos à Sra. Solange ela passou de avó amorosa a
avarenta antipática e quis aumentar-nos o preço. Que descaramento! Não conseguimos
renegociar mesmo ameaçando que íamos embora, e acabámos por ser despejadas sem
complacência. Decidimos dar uso à tenda e fomos ter com os nossos amigos ao
hostal Naylamp. Acreditem que é um must
carregar com as mochilas logo a seguir a uma aula de surf. Oh se é!
Nessa tarde decidimos incluir
algo cultural na nossa viagem e tivémos a companhia do Josh para visitar as
ruínas de Chan Chan, uma antiga cidadela de adobe com não me lembro quantos
hectares de área, pertencente à civilização Chimú (que habitou o norte do Perú
no século onze), e a meio caminho entre Trujillo e Huanchaco. É impressionante
esta cidade feita de areia, emergindo no meio do deserto com um oásis de água
no interior. Os Chimús canalizavam a água e tinham vastos campos cultivados no
meio das areias estéreis. Estava um calor que não se podia.
Há que caminhar quilómetro e meio no deserto para ir da paragem de autocarro ä cidadela de Chan Chan
Pequenos oásis no meio do deserto
Pelicanos de Huanchaco
O Gran Señor Chimu Capac
A Celsa e eu com o Gran Señor Chimu Capac
Funny days at the desert: eu, o Josh e a Celsa
Ao final do dia o Dave e a Trina
seguiram viagem para Lima e ficámos com o Josh a beber umas cervejas na praia à
noite. O troar das ondas tinham em mim um efeito de regresso a casa e de canção
de embalar, e ficámos algum tempo em silêncio simplesmente a ouvi-lo. A melhor
recordação que tenho desta viagem é a de adormecer e acordar com o barulho do
mar. Sinto imensamente a falta disso aqui nas montanhas.
No nosso antepenúltimo dia de
férias despedimo-nos do Josh, que também ia seguir viagem, e depois do microbus
para Trujillo apanhámos o bus para Chiclayo, onde nos esperavam os nossos
amigos Pilar e Mariano, que vivem em Ayacucho mas estavam de férias ali porque
é a terra natal dela. Em Chiclayo dormimos em casa de uma amiga da Pili e além
de darmos uma volta pela cidade tivémos o nosso segundo e último momento
cultural da viagem: visitámos um dos museus mais famosos do Perú, e o único que
eu visitei até à data: as Tumbas Reais do Senhor de Sipán, onde estão os artefactos
retirados de uma tumba funerária encerrada numa pirâmide de adobe da cultura
Moche, que habitou o norte do Perú no século trës. Dentro desta tumba foram descobertas
várias camadas sucessivas de personagens importantes enterradas, a avaliar pela
quantidade de objectos de ouro, prata e cerâmica que tinham enterradas consigo.
Este museu é impressionante não só pela riqueza que alberga mas também pela
documentação rigorosa do trabalho dos arqueólogos e pelas reconstituições
realistas da sociedade Moche.
Antes de apanharmos o bus
nocturno de Chiclayo para Lima no dia dez de janeiro tivémos ainda tempo para
ir à praia de Puerto Ente, onde vimos o mar pela última vez e comemos uma
especialidade da zona: arroz de pato. Sim, arroz de pato! Quem diria, hein?
A companhia com que viajámos,
Transportes Chiclayo, era em tudo oposta à da viagem do inferno: verdadeiros
assentos semi-cama, uma casa-de-banho em cada piso, jantar e pequeno-almoço
(melhores que nos aviões!!), mantinha e almofada, e uma hospedeira super
amável. Foi um regalo viajar naquele bus, apesar de terem sido treze horas até
Lima. Chegámos pela manhãnzinha e a ideia era passar o dia pela cidade e ir ao
cinema, repetindo o que fizémos no regresso do Lago Titicaca, e depois apanhar
outro autocarro nocturno para chegar a Ayacucho na manhã seguinte. Mas
estava-se a acabar o budget para as nossas férias e estávamos tão cansadas que
já não tínhamos coragem nem energia sequer para nos mexermos.
Então decidimo-nos pelo autocarro diurno para Ayacucho,
que é inclusive mais barato, e a viagem mais longa. Chegámos a casa à noitinha
dessa sexta-feira, depois de vinte e três horas de bus desde a costa norte. Foi
uma maratona interminável, eu já não tinha posição nem sentada nem deitada nem
de pé nem de maneira nenhuma. Só queria que acabasse, mas ao mesmo tempo não
queria voltar, o meu coração ficou no mar de Huanchaco e o regresso às
montanhas foi um puro sentido de dever e de inevitabilidade contra o qual o meu
espírito se revoltou a cada quilómetro. Lembro-me tão bem de ver o desenrolar
da paisagem já conhecida, primeiro um pedaço de costa desértica a sul de Lima,
depois a entrada nas montanhas ainda arenosas, e depois subindo pouco a pouco
até começar a ficar frio e passarmos pela neve. E a cada avanço na estrada eu
sentia-me cada vez mais esticada como um elástico, porque o bus estava a puxar
uma parte de mim para muito longe de onde tinha ficado a outra parte.
E quando chegámos a Ayacucho estava
a chover, e estava frio. E nós vínhamos ainda de calções, t-shirt e sandálias.
Escusado será descrever o choque. Valeu o fim de semana inteiro para recuperar,
a Tânia e a Chavi ansiosas pela nossa chegada e os amigos curiosos com as
nossas histórias. E depois a Celsa regressou ao trabalho mas eu ainda tive uma
semana de férias para deambular por Ayacucho, o que ajudou a que a pouco e
pouco o espírito voltasse aqui.
Agora, um mês depois, ainda
posso fechar os olhos e ver o brilho, ouvir o troar e sentir o cheiro a sal do
mar e a água na cara como se tivesse sido ontem. Quero guardar esta memória tão
vívida até à próxima vez que o vir.