O
tempo passa demasiado depressa. As coisas à minha volta mudam demasiado depressa.
O cérebro raciocina, entende e adapta-se, mas o espírito precisa de mais tempo
para interiorizar as mudanças e fica a ressacar quando estas se sucedem
vertiginosamente. E tem reacções estranhas. Este ano de dois mil e treze que
ainda agora começou já vai bem cheio de alterações, e quando olho para os meus
primeiros meses no Perú, que por estes dias já são quatro, sinto-os já muito
longínquos. Começou outra fase aqui, o meu cérebro raciocina e entende que as
coisas mudaram, mas o meu espírito está a ressacar.
A primeira mudança foi a chegada
da Inge, a nova psicóloga Mama Alice, holandesa e nova companheira de casa. Ela
chegou quando eu e a Celsa ainda estávamos de viagem, e ficámos um pouco
consternadas quando soubémos, na véspera de partir, que não íamos estar cá para
a receber. Lembro-me de quão importante foi a recepção e acompanhamento da
Celsa quando eu cheguei, e de como teria sido terrível estar sozinha nesses
momentos iniciais, e senti-me bastante mal por não poder acompanhar do mesmo
modo a recém chegada. Mas a Inge já tinha estado de voluntária em Ayacucho há
uns anos, na ONG Los Gorriones, já conhecia a cidade, a casa e a maioria das
pessoas da Mama Alice, e não se sentiu tão desorientada à chegada como eu.
Menos mal! Assim, no regresso das nossas férias éramos três em casa, e foi uma
novidade.
Eu, Celsa e Inge na noite da festa de despedida da Celsa
A segunda alteração foi
profissional. Como a maioria de vocês já sabe, comecei a trabalhar em part-time
num atelier de arquitectura aqui em Ayacucho. Eu já vinha de Lisboa com a ideia
de arranjar um trabalho pois o meu horário na Mama Alice é só às tardes.
Aproveitei os primeiros meses para me habituar à cidade, às pessoas, ao ritmo de
vida e também para descansar e decidi que em janeiro, no regresso das férias,
iria procurar um trabalho extra para pagar as despesas mensais e assim não
queimar totalmente as poupanças que trouxe para o Perú.
O que eu não estava à espera é
que fosse tão fácil e tão rápido concretizar este objectivo. Eu não estava a
pensar trabalhar em arquitectura. Na verdade, confesso que vim em busca de
novas experiências e a fugir dos ateliers, do computador, do autocad, dos
clientes, das plotagens e de todas as dores de cabeça inerentes à minha
profissão. A minha ideia de um trabalho em meio tempo era muito simples e
modesta, eu não estou à procura de um emprego estável aqui, simplesmente quero
aproveitar o tempo livre que tenho para ganhar algum dinheiro extra e alargar a
minha experiência de vida. Por isso fui a todos os hotéis e pensões de Ayacucho
oferecer os meus préstimos para trabalhar na recepção. Não tenho nenhuma
experiência neste campo mas esperava que o meu conhecimento de várias línguas
pudesse ser uma mais valia. Além disso tinha sempre a possibilidade de
trabalhar numa loja, pois aqui quase todas têm anúncios a pedir empregados, mas
eu tinha a intuição de que esse trabalho seria pesado e muito mal pago e estava
a deixar para o fim da lista.
Em todos os hotéis me deram
nega. Ou porque neste momento não estão a precisar de pessoal, ou porque
preferem peruanos a estranjeiros (o que faz sentido e eu até gostei de ouvir).
Uma hora depois de sair de casa nessa manhã de segunda-feira estava um pouco
desanimada e a precisar de mudar de estratégia. Então lembrei-me dos dois
ateliers de arquitectura que já tinha visto por acaso aqui no centro da cidade.
Recordo tão bem o meu pensamento nesse momento, em frente à porta de um deles:
“Queres mesmo fazer isto?” Eu queria trabalhar, ou melhor, não é que quisesse
mesmo (a minha vida tranquila e descansada tinha sido tão boa até aqui!) mas
sabia que era inteligente e sensato fazê-lo. Entrei no atelier. O que se seguiu
poderia ser apelidado de ficção científica para o panorama actual em Portugal.
Apresentei-me, disse ao que vinha, o arquitecto titular recebeu-me, fez-me
imensas perguntas, mostrou-me o seu trabalho e ficou fascinado por eu ser
arquitecta formada, europeia e com cinco anos de experiência. Propôs-me começar
a trabalhar imediatamente (imediatamente!!!). Eu ainda estava meio desorientada
com tantas mudanças (no meu espírito ainda ouvia o mar de Huanchaco) e não
estava a conseguir digerir tudo em tempo útil. Propus uma manhã de experiência
para o dia seguinte, e assim ganhar tempo para reflectir.
No segundo atelier onde fui a
situação repetiu-se. O arquitecto nem sequer quis olhar para o meu curriculum,
que era uma única página bastante modesta escrita em word (portfolio para quê?!),
de novo a minha proveniência e experiência falavam por mim. Há que
contextualizar a situação arquitectónica no Perú. Em Lima há universidades de
arquitectura há vários anos e aí concentram-se as empresas de contrução
peruanas e estrangeiras. Há imensas oportunidades de trabalho bastante bem pagas,
num estilo de vida em quase tudo semelhante a Portugal. Nas cidades das
províncias perdidas nas montanhas só agora surgiram as primeiras universidades,
pelo que não há ainda finalistas licenciados. Em Ayacucho há cerca de quarenta
arquitectos, dos quais só cinco tem atelier, e nesses ateliers apenas o patrão
é arquitecto. Nestes dois ateliers que visitei os colaboradores são ainda
estudantes. E trabalho não falta.
Foi assim que nessa manhã, em
duas horas, encontrei trabalho em dois ateliers e pude dar-me ao luxo de
escolher em qual queria trabalhar. Depois de uma manhã de experiência num e uma
tarde de experiência noutro, escolhi o atelier mais acolhedor, com mais luz
natural, e cujo trabalho se centra sobretudo em pequenos projectos para clientes
modestos aqui na região de Ayacucho: um casal de agricultores que quer
reconstruir a sua casita no campo; uma cabeleireira que quer abrir um salão; um
pequeno empresário que quer construir um hotel. Também temos projectos de maior
envergadura, como a renovação de uma discoteca aqui no centro da cidade,
primeiro trabalho à minha responsabilidade. O salário é bem baixo (níveis
peruanos) e dá à rasquinha para pagar a comida. Ainda estou a tentar concluir
se vale a pena ou não. É que trabalho de segunda a sexta das oito e meia à uma,
a um ritmo bastante acelarado, e o que ganho não compensa o cansaço. Mas
paga-me a comida.
Além disso devo referir que é mesmo
uma experiência de ficção científica ser arquitecto estranjeiro aqui. Os meus
cinco anos de experiência, que em Portugal me colocam na incómoda posição de
“já não sou uma estagiária barata mas ainda não tenho experiência suficiente
para ser coordenadora”, aqui dão-me um poder de semi-deusa. Todos me tratam com
uma deferência a que não estou habituada, o arquitecto vangloria-se aos
clientes apresentando-me como “a arquitecta que veio de Portugal para trabalhar
conosco” e isso causa um impacto surpreendente, quase ridículo. A mim dá-me
vontade de rir e não me sinto confortável com tanto poder, mas confesso que ter
uma reacção constantemente positiva às minhas ideias e conhecimentos é
refrescante. Vou ficar mal habituada para voltar para Portugal.
E foi assim que de repente me vi
com as manhãs todas ocupadas e com muito menos tempo para escrever, ler, ir ao
mercado ou fazer natação. Não estou eufórica com essa perda de qualidade de
vida, sobretudo não estou muito contente por passar quatro horas e meia por dia
à frente do computador a desenhar em autocad, mas a verdade é que se quero
ganhar algum dinheiro para me sustentar aqui esta é a minha melhor
possibilidade. E admito que não tem sido tão mau como eu temia.
Por fim, a maior de todas as
mudanças, que mais impacto está a ter na minha vida presente, que o meu cérebro
entende e aceita mas que o meu espírito está a ressacar imenso, foi a partida
da Celsa. A Celsa decidiu regressar a casa no final de janeiro, depois de oito
meses no Perú. Desde dezembro que a decisão estava tomada e as razões, de cariz
pessoal, eram perfeitamente válidas. A nossa viagem de Ano Novo revestiu-se,
assim, de um tom muito mais intenso por ser a última viagem juntas. E o mês de
janeiro foi muito emotivo. Nesse período demo-nos conta da cumplicidade que
desenvolvemos nestes meses, por partilharmos casa mas sobretudo pelas viagens
que fizémos. Passámos tanto tempo juntas, vivemos tantas aventuras e
partilhámos tantas situações que já tínhamos uma linguagem própria e um
imaginário comum a que os nossos amigos aqui satiricamente chamavam de “pequeno
casamento”.
A Celsa foi embora de Ayacucho no
dia trinta e um de dezembro à noite, depois de uma semana de despedidas
diárias. Aqui qualquer motivo é pretexto para o pessoal se reunir e festejar, e
a partida de uma amiga querida muito mais válido pretexto é. Foi muito
estranho. Ainda é estranho agora, apenas dez dias depois da partida, dez dias
que já me parecem dez semanas. A maior parte do tempo quase nem me lembro,
ocupada como estou. É quando chego a casa à noite que me lembro que ela já não está
cá, ou quando alguma situação caricata ocorre que me vem o impulso de “contar à
Celsa”. Ou quando penso em viajar e já não posso fazer planos com ela.
E isso é o mais estranho de tudo, planear agora viagens sem ela. Porque
tivémos uma sorte imensa em partilhar o mesmo tipo de gosto por viagens, porque
somos as duas pobres e aventureiras, gostamos de viver tudo ao máximo da emoção
e gastar o menos dinheiro possível, mesmo que isso signifique dormir numa tenda
e almoçar fruta e pão e viajar consecutivamente em autocarros nocturnos. Foi
uma sorte vir para o outro lado do mundo e encontrar uma vizinha ibérica com
quem viajar foi tão natural, tão fácil e tão enriquecedor. Foram viagens que me
mudaram, ou melhor, que me confirmaram a pessoa que sou e me abriram os
horizontes da mente e do espírito para o mundo à minha volta e a vida que escolho
viver.
Desde que descubri que viajar é o que mais gosto de fazer na vida que
percebi que viajar com outras pessoas é um processo, e que não se viaja bem com
qualquer um. Por isso é uma sorte quando encontramos alguém que viaja ao mesmo
estilo que nós. E por isso agora me é tão estranho imaginar outras viagens no
Perú sem a Celsa. Mas nós temos um acordo. Ela tem o desejo de voltar à América
Latina depois de uns meses em Valência, sobretudo porque as previsões de
conseguir arranjar um trabalho lá não são nada prometedoras. Então se não
houver alteração de planos (o que aqui é o mais provável de acontecer, e faz
parte do encanto) esse regresso concidirá com o meu último mês no Perú, para
uma última viagem juntas. Última…ou primeira de muitas mais. Quem sabe o que
pode acontecer.
A juntar e baralhar ainda mais esta salada de mudanças vertiginosas,
chegou mais uma voluntária à Mama Alice. Chama-se Mathilda, é belga e chegou no
dia seis de fevereiro. Pois agora somos três em casa outra vez, uma ibérica e
duas flamengas. Em poucas semanas mudou tudo! Apenas a casa é a mesma. As
dinâmicas interpessoais são inevitavelmente diferentes, e agora encontro-me na curiosa
situação de ser a “mais velha da casa”. Quando comparo isso com a desorientação
e estranheza que vivi nos primeiros tempos não posso evitar de ficar
surpreendida. É que o meu cérebro entende, adapta-se e abre-se à expectativa
deste novo período. Tudo é experiência de vida, e não tenho motivos para pensar
que não vai ser bom também. Até agora nada foi mau aqui no Perú, não me posso
queixar. Um verdadeiro viajante tem de ter a mente aberta para os olás e um
espírito tranquilo para os adeuses. Mas as mudanças são demasiado rápidas, o
que ficou para trás foi muito bom, e o meu espírito ainda está a ressacar.
Última foto de grupo com Celsa, Sol, os couchsurfers Guillermo e Pau, Pili, a couchsurfer Cláudia, eu, Inge, Nati, Tania, Stefi, Otchoa, Juan e Mariano, na nossa casa.