No Perú o Carnaval é um evento. Se nós, portugueses, achamos que o
festejamos à grande e com um estilo muito próprio, temos de vir aqui para
percebermos o que é a verdadeira festa. E de todo o Perú, é nas províncias que
este período é festejado com mais emoção e intensidade, e os Carnavais de
Cajamarca, Puno e Ayacucho são famosos em todo o país. O que dá origem a um
incrível fluxo de turismo interno: nestes dias, a população de Ayacucho
triplica.
Tudo começa no princípio de fevereiro com as guerras de água. Esqueçam
lá os balões de água no fim de semana de Carnaval. Aqui é um mês inteiro de
batalhas campais nas ruas, com balões, pistolas de água e sobretudo baldes.
Sim, o pessoal aqui atira baldadas de água aos traunseuntes, sem qualquer pudor
ou complacência, e nestas últimas semanas eu desenvolvi uma autêntica técnica
de guerrilha urbana para escapar aos ataques. O meu bairro é um dos centros da
guerra aquática, e é difícil transmitir a sensação de perigo iminente que sinto
cada vez que saio à rua. Ser gringa torna-me num alvo apetecível e não há modo
de escapar: ou ando às voltas pelas ruas menos movimentadas, ou acabo
encharcada. Aprendi isso às minhas próprias custas. E o mais revoltante é que
os putos regozijam-se em atacar-me e gozam comigo na cara. E eu, indefesa, não
posso responder-lhes à letra, a sorte deles é que estão demasiado longe para
lhes alcançar uma boa palmada. Confesso que já estou bem farta, felizmente que
está a acabar.
O Carnaval em Ayacucho foi uma novidade para mim. Aqui a tradição não é
mascarar-se de qualquer coisa (isso fazem-no no Halloween), mas vestir-se com
os trajes tradicionais da região e sair à rua em desfiles organizados ao ritmo
das canções e danças ayacuchanas. Os desfiles duram quatro dias e estão divididos
por entidades: no sábado desfilam as empresas públicas e privadas, no domingo é
o dia das associações culturais, e segunda e terça-feira desfilam os grupos
informais de rua ou de bairro. Segunda e terça-feira são feriados municipais e
a cidade pára para ver passar os grupos. Tudo isto acompanhado de muita
cerveja, vinho e pisco (aguardente peruana). Os desfiles duram a tarde toda,
têm um percurso definido por várias ruas do centro da cidade e a acabar na
Plaza de Armas, e à noitinha já é difícil perceber quem está mais bêbedo: se os
expectadores se os participantes. Aqui o pessoal leva o sentido de festa mesmo
à risca. E consta que a tradição é que nove meses depois do Carnaval nasçam
muitos bebés.
Na Mama Alice gostamos de fazer as coisas de um modo diferente, não
fosse a Fredy uma holandesa de mente muito aberta, ideias muito originais e
energia extra para motivar toda a gente. Por isso, apesar das reacções iniciais
de estranheza por parte dos trabalhadores habituados às suas tradições, decidimos
que a nossa participação no desfile tinha de ser diferente, impactante e chamar
a atenção, para não nos confundirmos na multidão de ayacuchanos vestidos em
trajes tradicionais, e para que a nossa presença fosse notada, falada e
recordada. Assim, teve a Fredy a ideia genial de criar uma batucada. A
direcção artística ficou a cargo da Nati, psicóloga limenha com um sentido de
ritmo impressionante e que durante vários anos integrou um grupo amador de
percussão. As sequências rítmicas foram inventadas por ela, e foi louvável a
sua paciência para ensinar e ensaiar todos os trabalhadores Mama Alice e os
adolescentes que frequentam o nosso curso de formação em carpintaria. Praticámos
durante três semanas, duas horas por dia, sessenta pessoas, e no final este
bando de descoordenados rítmicos transformou-se numa batucada de nível
profissional.
Saímos à rua no sábado dia nove de fevereiro às duas da tarde. Em vez
de trajes tradicionais íamos vestidos completamente de preto e com a cara
pintada de prateado. Os homens levavam chapéus tipo cartola e as mulheres
levavam o cabelo despenteado tipo bruxa, e uma máscara de baile. Éramos uma
banda super completa e dividida por instrumentos: as tarolas à frente, as
campanitas a meio e os bombos atrás. E os nossos instrumentos eram muito
peculiares: alguidares e cestas de plástico, garrafas de vidro e bidons de lixo.
Havia ainda um grupo de bailarinos a abrir o cortejo. Formávamos um conjunto
impressionante e era impossível passarmos despercebidos, graças ao espectáculo
visual e sonoro que apresentámos. Fomos a comparsa número trinta e nove num
total de oitenta e oito, desfilámos durante seis horas pelas ruas da cidade e
tivémos muita sorte com o tempo, porque não houve sol que nos grelhasse e só
choveu quando já estávamos a terminar.
E quando entrámos na Plaza de Armas apinhada de gente, focos apontados,
câmaras da televisão nacional, coração aos pulos no peito e descarga nervosa
pela espinha abaixo, cantámos a plenos pulmões “Somos Mama Alice” e cada um de
nós sentiu a recompensa do esforço, cansaço, fome e sede que passámos para
chegar àquele momento inesquecível de pura adrenalina. E orgulho. Foi um dos
dias mais bonitos e emocionantes que vivi desde que cheguei. E foi um sucesso.
Os amigos e as pessoas conhecidas que nos viram elogiaram a nossa originalidade
e qualidade. O objectivo de causar impacto, chamar a atenção, ser notados e
recordados foi completamente alcançado. E sem pinga de alcoól, há que referir.
Também nisto Mama Alice fugiu à tradição.
“Ya llegó, ya llegó Mama Alice al
Carnaval. Vamos a desfilar!”
“Arriba, abajo, somos Mama Alice.
Derecha, izquierda, siempre Mama Alice.”
“Solo he salido, solo de mi casa,
com el destino hacia Mama Alice. Brindamos apoyo en educación, psicologia,
salude y sociales, a todos los niños en los locales.”
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