O meu trabalho ideal será sempre
o que me faça viajar. Se puder trabalhar a fazer o que mais prazer nesta vida
me dá, serei mais feliz. Até agora, as únicas “viagens de trabalho” que tive
foi ir a uma obra fazer acompanhamento. Isso significava passar uma manhã ou
uma tarde fora do atelier e já era uma fuga à rotina com grande emoção. Sempre
invejei um bocadinho (inveja boa) os meus amigos que, pelas suas profissões,
passam uma ou outra semana por mês em viagem.
Como no Perú tudo pode acontecer (e muita coisa acontece!) em
consequência de ter começado a trabalhar no novo projecto Mama Alice tive a
minha primeira viagem de trabalho a sério: fui durante uma semana à região de
Quillabamba, a seis horas de cidade de Cuzco, com a Fredy (fundadora), a Angela
(coordenadora dos recursos humanos), o Jhon (responsável do centro no bairro de
Keiko Sofia) e o Yuri (motorista), conhecer a zona e procurar potenciais
terrenos para a instalação do resort ecológico de turismo de luxo que
pretendemos construir em nome da Mama Alice, para gerar financiamento regular e
duradouro para os nossos projectos com as crianças e adolescentes aqui em
Ayacucho. Alguns de vocês talvez ainda não saibam que eu serei a arquitecta
coordenadora do projecto e da construção, o que significa que no próximo ano
(ainda não é certo a partir de quando) voltarei ao Perú para doze meses de
trabalho pago.
Eu adoro road trips. Já vos tinha explicado porquê num dos primeiros
posts deste blog, sobre a viagem a Paracas e Huacachina em novembro passado. Desta
vez o contexto não foi de férias e a companhia eram colegas de trabalho, mas
foi igualmente emocionante percorrer de carro largas distâncias vendo
desenrolar a paisagem deslumbrante pela janela, e conhecer os meandros
recônditos da selva de Cuzco. Saímos de Ayacucho às quatro da manhã do dia sete
de maio e atravessámos a sierra sudoeste do Perú para chegar a Cuzco à noite,
passando pelas cidades de Andahuaylas e Abancay. Eu já conhecia este percurso
de quando fui ao Lago Titicaca com a Celsa em dezembro, mas agora tive a
oportunidade de fazer todo o caminho de dia (anteriormente tinha sido um dia e
uma noite, de carro é mais rápido). E se foi indescritível ver o amanhecer nas
montanhas, subir a cumes gelados e cubrir-me de camadas de roupa, e descer a
vales semi-tropicais e tirar as mesmas camadas de roupa, para voltar a pô-las
no cume gelado seguinte, também foi um cansaço daqueles passar um dia de carro
nas estreitas estradas de terra batida e curvas sinuosas das montanhas do Perú.
Além disso, devido às obras de recuperação dessas mesmas estradas, que
se Deus quiser daqui a uns meses estarão todas asfaltadas, perdemos imenso
tempo nos “passos cerrados”: aqui trabalha-se de dia e não de noite, como seria
mais operativo, e fecham-se troços de estrada durante todo o dia à excepção de
alguns intervalos de uma hora. Quem não sabe e não se programa para chegar a
tempo de passar durante esse intervalo não tem outro remédio se não esperar
várias horas à beira do abismo até que o passo volte a abrir. Foi o que nos
aconteceu pouco antes da cidade de Abancay. Ainda tentámos contornar as rochas
postas no meio da estrada para impedir a passagem – e conseguimos – para mais à
frente sermos definitivamente bloqueados pela polícia. E daí já não passámos,
até três horas mais tarde. O Perú é um país subdesenvolvido onde faltam muitas
coisas, mas há certos serviços básicos sempe disponíveis em qualquer aldeia
minúscula perdida no meio das montanhas. Um deles é um internet point, outro é
uma lavandaria, e outro, mais importante de todos, é comida e refrigerantes. No
Perú há sempre comida em qualquer lado, mesmo à beira da estrada. Foi assim que
descubrimos uma casa decrépita ao lado do posto de controlo, onde uma senhora
vendia bebidas, fruta e bolachas, e aceitou cozinhar-nos um almoço modesto
comum nas famílias pobres: arroz branco com ovo estrelado. À beira da estrada.
Soube-nos pela vida.
Chegámos a Cuzco às nove da noite, depois de dezassete horas para
percorrer quinhentos quilómetros, e apesar da emoção de estar nesta cidade
lindíssima que é a minha preferida deste país, o cansaço levou a melhor e
jantámos uma pizza no quarto do hotel. Estava muito frio!! Agora está a começar
o inverno e nas cidades de altitude, como Cuzco e Ayacucho, faz calor de dia
quando há sol e muito frio de manhã e à noite.
O dia seguinte foi passado em
viagem de Cuzco para Quillabamba. Num país com boas estradas a viagem duraria
quatro horas, mas aqui durou sete porque mais uma vez a estrada serpenteia
pelas montanhas e mais uma vez apanhámos um passo cerrado onde perdemos duas
horas à espera. Na altura eu ainda não sabia, mas esse evento tornou-se diário
e um marco da nossa viagem. Parece que todas as estradas desta província estão
em reconversão. Todas. Apesar disto, a paisagem por onde viajámos este dia é
simplesmente deslumbrante. É o famoso Valle Sagrado dos Incas, o vale do rio
Urubamba que atravessámos de uma ponta à outra. Está polvilhado de aldeias
típicas serranas e ruínas incas, uma zona de colinas suaves que me recorda a
Toscânia, com a diferença de estar enclausurada entre muralhas montanhosas de
neves eternas. Eu estava fascinada. Este vale era sagrado para a civilização
inca e guarda o caminho entre Cuzco e Machu Pichu, e desde que sonho em cá vir
que tenho este nome na minha mente com um significado esotérico e sinónimo de
utopia mágica: Valle Sagrado. Não me decepcionou, valeu cada curva e cada
contracurva. Não fizémos nenhuma visita turística, estávamos só de passagem,
mas aguçou-me a curiosidade e a emoção para quando voltar lá para visitar como
deve ser (o que vai ser já daqui a três semanas, durante as minhas férias!).
Yuri, Jhon, eu e Angi (Fredy atrás da câmara)
Foi um dia maravilhoso, apesar do cansaço de viajar muitas horas de
carro. Chegámos à cidade de Quillabamba ao final do dia, fomos recebidos por um
calor suave e uma brisa amena e desta vez tivémos energia para ir jantar fora.
Mas às dez da noite eu já estava a dormir.
O objectivo desta
viagem era conhecer a zona de Quillabamba, avaliar o potencial para o tipo de
turismo que queremos atrair, conhecer os atractivos turísticos da região e
procurar terrenos para comprar. Nos últimos dois meses eu tenho estado a
procurar fundos de cooperação internacional para financiamento de projectos
sociais, como já vos tinha contado, e um dos pedidos é para a aquisição do
terreno e a construção do eco-lodge. Ainda não recebemos nenhuma resposta
positiva a esses pedidos mas temos de adiantar-nos e escolher uma propriedade
para comprar assim que recebamos o primeiro fundo. Por isso passámos essa
semana a procurar terrenos nos arredores das cidades de Quillabamba e Echarati,
nas pequenas aldeias, no meio das hortas e das plantações, por estradas de
terra batida e caminhos de cabras, batendo a cada porta e perguntando a cada
pessoa na rua se sabiam de terrenos em venda. Isto permitiu-nos chegar a
lugares de natureza incrível, puro verde ao som de um rio, alguns com acesso
automóvel bastante arcaico e sem cobertura de rede de telemóvel, no meio das
montanhas desta região, onde eu nunca iria por passeio. Aqui o clima é
semi-tropical e a paisagem é radicalmente diferente de Cuzco, sendo uma
transição entre a sierra e a selva. Há imensas árvores e plantas, sobretudo bananas,
café, cacau, manga e pêra abacate. O ar é mais húmido e a temperatura não desce
abaixo dos quinze graus nem sobe acima dos trinta durante todo o ano. Por isso
Quillabamba é chamada a “Cidade do eterno verão”.
A nossa rotina diária durante essa semana consistiu em acordar cedo, tomar
o pequeno-almoço e arrancar de carro à procura de terrenos, almoçar tarde e
regressar ao final do dia para morrer na cama às oito da noite sem sequer ter
fome para jantar. E todos os dias apanhámos alguma parte de estrada fechada
para obras, perdendo pelo menos uma hora de tempo muito útil.
Não foi tão fácil encontrar terrenos como pensávamos ao princípio. A
zona de Quillabamba ainda não é muito turística (vi apenas dois estranjeiros
durante essa semana) mas está a desenvolver-se rapidamente devido à descoberta
de gás natural na região, que começou a ser explorado por uma empresa peruana e
deu origem a um boom de construção e especulação. Por isso todas as estradas da
província estão em obras e o custo de vida subiu. A mão-de-obra tornou-se das
mais cara do país, os terrenos foram quase todos lotizados em pequenas parcelas
e os preços são muito mais altos do que imaginávamos e do que estamos
habituados em Ayacucho. Para a instalação do eco-lodge queremos uma propriedade
de vários hectares com muitas árvores e um rio ou uma cascata, e os terrenos
que encontrámos são demasiado pequenos ou demasiado caros. Ao final de uma
semana não tínhamos uma lista de opções para negociar e saímos de Quillabamba
com apenas dois terrenos em vista, dos quais um é pequeno e podemos conseguir
mais facilmente financiamento para o comprar, e o outro é perfeito mas sai-nos
completamente fora do orçamento. Regressámos a casa desanimados e sem saber
muito bem que passo dar a seguir.
Em compensação, o ambiente que
vivemos durante essa viagem foi genial. Os meus companheiros de trabalho são
muito divertidos, no geral os peruanos gostam muuuuuito de contar piadas e
gozar com todas as situações e pessoas, e a Fredy é uma chefe com um grande
coração e muito sentido de humor. Passar oito dias num carro com cinco pessoas
aproximou-nos e ultrapassámos algumas barreiras de distância profissional e de
conhecimento mútuo. Eles já sabem que quando eu estou cansada posso passar
bastante tempo sem dizer uma palavra e ficar só a olhar a paisagem, e que cada
hora temos de parar porque a minha bexiga é pequenina. E eu também já sei
várias coisas desse tipo sobre cada um deles. Tornámo-nos bastante familiares.
Com a minha primeira viagem de
trabalho a sério descubri que é bom fugir à rotina e passar uns dias a
trabalhar fora mas cheguei também à conclusão de que não são férias e é bstante
cansativo. Por isso ao final de uma semana eu já tinha saudades de casa e
estava desejosa de voltar. O regresso foi tão interminável como a ida, saímos
de Cuzco às sete da manhã e chegámos a Ayacucho às nove da noite, apanhando
pelo caminho mais um passo cerrado da tradição, que eu e a Angela conseguimos
resolver porque fomos falar com o engenheiro e o capataz responsáveis da obra
dizendo que tínhamos uma emergência em Ayacucho e precisávamos de chegar
depressa. Acederam a barir a estrada mais cedo, ganhámos uma hora de viagem e
mais uma vez constatei que no Perú quase nada é impossível, desde que se perca
a vergonha e se vá falar directamente com quem tem poder para ajudar.
À chegada a Ayacucho na
quarta-feira dia quinze de maio à noite os meus colegas de casa e amigos
estavam reunidos no bar do costume e eu fui directa para lá com a mochila e o
cansaço da viagem. Foi uma recepção memorável e um dos momentos mais simples em
que estive mais feliz em Ayacucho. Ouvi várias vezes que tinham sentido muito a
minha falta.
O fim de semana seguinte foi o
último que passámos os cinco juntos em casa. Na próxima sexta-feira eu viajo
para Lima para receber a Cátia, o Ricardo, o Tiago e o Pedro que me vêm visitar
e viajar comigo pelo sul do Perú durante duas semanas, quando voltar a Floor e
o Rutger já terão regressado à Holanda, e uma semana depois a Mathilda também
termina o voluntariado e regressa à Bélgica. E entretanto a Inge decidiu alugar
um apartamento com uma amiga nossa, porque vai ficar indefinidamente por cá e é
incómodo viver a longo prazo numa casa em que as pessoas chegam e partem a cada
três ou quatro meses. Ela tinha a ideia de entrar na nova casa no final de
julho, quando eu me for embora de Ayacucho, mas a Emilie tem mais pressa e
então decidiram entrar a meio de junho, precisamente quando a Mathilda vai
embora. Por isso o fim de semana passado foi especial e cozinhámos juntos e
fomos cumprir a tradição de dançar ao sábado à noite.
Ou seja……depois de muitos meses
no Perú, com tantas mudanças e situações novas a cada instante, vou ficar
sozinha em casa durante algumas semanas e essa ideia não me agrada nada. Mas se
há coisinha que aprendi desde que cá cheguei é que as alterações não são
forçosamente más ainda que à partida assim pareça (lembro-me ainda tão bem do
coração apertado quando a Celsa se foi embora) e que cada mudança é uma porta
que se abre para um novo contexto não imaginado previamente. E agora sei que
esse mês e meio depois da minha viagem, que será o meu último em Ayacucho, tem
um enorme potencial para ser inesquecível. It’s going to be legen….wait for it!