quarta-feira, 22 de maio de 2013

DIA 207 – VIAGEM DE RECONHECIMENTO A QUILLABAMBA, SELVA DE CUZCO – 7 MESES DE PERÚ

                O meu trabalho ideal será sempre o que me faça viajar. Se puder trabalhar a fazer o que mais prazer nesta vida me dá, serei mais feliz. Até agora, as únicas “viagens de trabalho” que tive foi ir a uma obra fazer acompanhamento. Isso significava passar uma manhã ou uma tarde fora do atelier e já era uma fuga à rotina com grande emoção. Sempre invejei um bocadinho (inveja boa) os meus amigos que, pelas suas profissões, passam uma ou outra semana por mês em viagem.

Como no Perú tudo pode acontecer (e muita coisa acontece!) em consequência de ter começado a trabalhar no novo projecto Mama Alice tive a minha primeira viagem de trabalho a sério: fui durante uma semana à região de Quillabamba, a seis horas de cidade de Cuzco, com a Fredy (fundadora), a Angela (coordenadora dos recursos humanos), o Jhon (responsável do centro no bairro de Keiko Sofia) e o Yuri (motorista), conhecer a zona e procurar potenciais terrenos para a instalação do resort ecológico de turismo de luxo que pretendemos construir em nome da Mama Alice, para gerar financiamento regular e duradouro para os nossos projectos com as crianças e adolescentes aqui em Ayacucho. Alguns de vocês talvez ainda não saibam que eu serei a arquitecta coordenadora do projecto e da construção, o que significa que no próximo ano (ainda não é certo a partir de quando) voltarei ao Perú para doze meses de trabalho pago.

Eu adoro road trips. Já vos tinha explicado porquê num dos primeiros posts deste blog, sobre a viagem a Paracas e Huacachina em novembro passado. Desta vez o contexto não foi de férias e a companhia eram colegas de trabalho, mas foi igualmente emocionante percorrer de carro largas distâncias vendo desenrolar a paisagem deslumbrante pela janela, e conhecer os meandros recônditos da selva de Cuzco. Saímos de Ayacucho às quatro da manhã do dia sete de maio e atravessámos a sierra sudoeste do Perú para chegar a Cuzco à noite, passando pelas cidades de Andahuaylas e Abancay. Eu já conhecia este percurso de quando fui ao Lago Titicaca com a Celsa em dezembro, mas agora tive a oportunidade de fazer todo o caminho de dia (anteriormente tinha sido um dia e uma noite, de carro é mais rápido). E se foi indescritível ver o amanhecer nas montanhas, subir a cumes gelados e cubrir-me de camadas de roupa, e descer a vales semi-tropicais e tirar as mesmas camadas de roupa, para voltar a pô-las no cume gelado seguinte, também foi um cansaço daqueles passar um dia de carro nas estreitas estradas de terra batida e curvas sinuosas das montanhas do Perú.





Além disso, devido às obras de recuperação dessas mesmas estradas, que se Deus quiser daqui a uns meses estarão todas asfaltadas, perdemos imenso tempo nos “passos cerrados”: aqui trabalha-se de dia e não de noite, como seria mais operativo, e fecham-se troços de estrada durante todo o dia à excepção de alguns intervalos de uma hora. Quem não sabe e não se programa para chegar a tempo de passar durante esse intervalo não tem outro remédio se não esperar várias horas à beira do abismo até que o passo volte a abrir. Foi o que nos aconteceu pouco antes da cidade de Abancay. Ainda tentámos contornar as rochas postas no meio da estrada para impedir a passagem – e conseguimos – para mais à frente sermos definitivamente bloqueados pela polícia. E daí já não passámos, até três horas mais tarde. O Perú é um país subdesenvolvido onde faltam muitas coisas, mas há certos serviços básicos sempe disponíveis em qualquer aldeia minúscula perdida no meio das montanhas. Um deles é um internet point, outro é uma lavandaria, e outro, mais importante de todos, é comida e refrigerantes. No Perú há sempre comida em qualquer lado, mesmo à beira da estrada. Foi assim que descubrimos uma casa decrépita ao lado do posto de controlo, onde uma senhora vendia bebidas, fruta e bolachas, e aceitou cozinhar-nos um almoço modesto comum nas famílias pobres: arroz branco com ovo estrelado. À beira da estrada. Soube-nos pela vida.




Chegámos a Cuzco às nove da noite, depois de dezassete horas para percorrer quinhentos quilómetros, e apesar da emoção de estar nesta cidade lindíssima que é a minha preferida deste país, o cansaço levou a melhor e jantámos uma pizza no quarto do hotel. Estava muito frio!! Agora está a começar o inverno e nas cidades de altitude, como Cuzco e Ayacucho, faz calor de dia quando há sol e muito frio de manhã e à noite.

                O dia seguinte foi passado em viagem de Cuzco para Quillabamba. Num país com boas estradas a viagem duraria quatro horas, mas aqui durou sete porque mais uma vez a estrada serpenteia pelas montanhas e mais uma vez apanhámos um passo cerrado onde perdemos duas horas à espera. Na altura eu ainda não sabia, mas esse evento tornou-se diário e um marco da nossa viagem. Parece que todas as estradas desta província estão em reconversão. Todas. Apesar disto, a paisagem por onde viajámos este dia é simplesmente deslumbrante. É o famoso Valle Sagrado dos Incas, o vale do rio Urubamba que atravessámos de uma ponta à outra. Está polvilhado de aldeias típicas serranas e ruínas incas, uma zona de colinas suaves que me recorda a Toscânia, com a diferença de estar enclausurada entre muralhas montanhosas de neves eternas. Eu estava fascinada. Este vale era sagrado para a civilização inca e guarda o caminho entre Cuzco e Machu Pichu, e desde que sonho em cá vir que tenho este nome na minha mente com um significado esotérico e sinónimo de utopia mágica: Valle Sagrado. Não me decepcionou, valeu cada curva e cada contracurva. Não fizémos nenhuma visita turística, estávamos só de passagem, mas aguçou-me a curiosidade e a emoção para quando voltar lá para visitar como deve ser (o que vai ser já daqui a três semanas, durante as minhas férias!).







3º Passo cerrado da viagem - algures no Valle Sagrado entre Cuzco e Quillabamba

Yuri, Jhon, eu e Angi (Fredy atrás da câmara)

Foi um dia maravilhoso, apesar do cansaço de viajar muitas horas de carro. Chegámos à cidade de Quillabamba ao final do dia, fomos recebidos por um calor suave e uma brisa amena e desta vez tivémos energia para ir jantar fora. Mas às dez da noite eu já estava a dormir.                                                                                       
O objectivo desta viagem era conhecer a zona de Quillabamba, avaliar o potencial para o tipo de turismo que queremos atrair, conhecer os atractivos turísticos da região e procurar terrenos para comprar. Nos últimos dois meses eu tenho estado a procurar fundos de cooperação internacional para financiamento de projectos sociais, como já vos tinha contado, e um dos pedidos é para a aquisição do terreno e a construção do eco-lodge. Ainda não recebemos nenhuma resposta positiva a esses pedidos mas temos de adiantar-nos e escolher uma propriedade para comprar assim que recebamos o primeiro fundo. Por isso passámos essa semana a procurar terrenos nos arredores das cidades de Quillabamba e Echarati, nas pequenas aldeias, no meio das hortas e das plantações, por estradas de terra batida e caminhos de cabras, batendo a cada porta e perguntando a cada pessoa na rua se sabiam de terrenos em venda. Isto permitiu-nos chegar a lugares de natureza incrível, puro verde ao som de um rio, alguns com acesso automóvel bastante arcaico e sem cobertura de rede de telemóvel, no meio das montanhas desta região, onde eu nunca iria por passeio. Aqui o clima é semi-tropical e a paisagem é radicalmente diferente de Cuzco, sendo uma transição entre a sierra e a selva. Há imensas árvores e plantas, sobretudo bananas, café, cacau, manga e pêra abacate. O ar é mais húmido e a temperatura não desce abaixo dos quinze graus nem sobe acima dos trinta durante todo o ano. Por isso Quillabamba é chamada a “Cidade do eterno verão”.

 Quillabamba


Echarati




Maranura






Potrero






Siete Tinajas





Café!

A nossa rotina diária durante essa semana consistiu em acordar cedo, tomar o pequeno-almoço e arrancar de carro à procura de terrenos, almoçar tarde e regressar ao final do dia para morrer na cama às oito da noite sem sequer ter fome para jantar. E todos os dias apanhámos alguma parte de estrada fechada para obras, perdendo pelo menos uma hora de tempo muito útil.

Não foi tão fácil encontrar terrenos como pensávamos ao princípio. A zona de Quillabamba ainda não é muito turística (vi apenas dois estranjeiros durante essa semana) mas está a desenvolver-se rapidamente devido à descoberta de gás natural na região, que começou a ser explorado por uma empresa peruana e deu origem a um boom de construção e especulação. Por isso todas as estradas da província estão em obras e o custo de vida subiu. A mão-de-obra tornou-se das mais cara do país, os terrenos foram quase todos lotizados em pequenas parcelas e os preços são muito mais altos do que imaginávamos e do que estamos habituados em Ayacucho. Para a instalação do eco-lodge queremos uma propriedade de vários hectares com muitas árvores e um rio ou uma cascata, e os terrenos que encontrámos são demasiado pequenos ou demasiado caros. Ao final de uma semana não tínhamos uma lista de opções para negociar e saímos de Quillabamba com apenas dois terrenos em vista, dos quais um é pequeno e podemos conseguir mais facilmente financiamento para o comprar, e o outro é perfeito mas sai-nos completamente fora do orçamento. Regressámos a casa desanimados e sem saber muito bem que passo dar a seguir.

                Em compensação, o ambiente que vivemos durante essa viagem foi genial. Os meus companheiros de trabalho são muito divertidos, no geral os peruanos gostam muuuuuito de contar piadas e gozar com todas as situações e pessoas, e a Fredy é uma chefe com um grande coração e muito sentido de humor. Passar oito dias num carro com cinco pessoas aproximou-nos e ultrapassámos algumas barreiras de distância profissional e de conhecimento mútuo. Eles já sabem que quando eu estou cansada posso passar bastante tempo sem dizer uma palavra e ficar só a olhar a paisagem, e que cada hora temos de parar porque a minha bexiga é pequenina. E eu também já sei várias coisas desse tipo sobre cada um deles. Tornámo-nos bastante familiares.

                Com a minha primeira viagem de trabalho a sério descubri que é bom fugir à rotina e passar uns dias a trabalhar fora mas cheguei também à conclusão de que não são férias e é bstante cansativo. Por isso ao final de uma semana eu já tinha saudades de casa e estava desejosa de voltar. O regresso foi tão interminável como a ida, saímos de Cuzco às sete da manhã e chegámos a Ayacucho às nove da noite, apanhando pelo caminho mais um passo cerrado da tradição, que eu e a Angela conseguimos resolver porque fomos falar com o engenheiro e o capataz responsáveis da obra dizendo que tínhamos uma emergência em Ayacucho e precisávamos de chegar depressa. Acederam a barir a estrada mais cedo, ganhámos uma hora de viagem e mais uma vez constatei que no Perú quase nada é impossível, desde que se perca a vergonha e se vá falar directamente com quem tem poder para ajudar.

Último passo cerrado da viagem, meia hora depois da saída de Cuzco

                À chegada a Ayacucho na quarta-feira dia quinze de maio à noite os meus colegas de casa e amigos estavam reunidos no bar do costume e eu fui directa para lá com a mochila e o cansaço da viagem. Foi uma recepção memorável e um dos momentos mais simples em que estive mais feliz em Ayacucho. Ouvi várias vezes que tinham sentido muito a minha falta.

                O fim de semana seguinte foi o último que passámos os cinco juntos em casa. Na próxima sexta-feira eu viajo para Lima para receber a Cátia, o Ricardo, o Tiago e o Pedro que me vêm visitar e viajar comigo pelo sul do Perú durante duas semanas, quando voltar a Floor e o Rutger já terão regressado à Holanda, e uma semana depois a Mathilda também termina o voluntariado e regressa à Bélgica. E entretanto a Inge decidiu alugar um apartamento com uma amiga nossa, porque vai ficar indefinidamente por cá e é incómodo viver a longo prazo numa casa em que as pessoas chegam e partem a cada três ou quatro meses. Ela tinha a ideia de entrar na nova casa no final de julho, quando eu me for embora de Ayacucho, mas a Emilie tem mais pressa e então decidiram entrar a meio de junho, precisamente quando a Mathilda vai embora. Por isso o fim de semana passado foi especial e cozinhámos juntos e fomos cumprir a tradição de dançar ao sábado à noite.

Inge, Rutger, Floor, eu e Mathilda com uma lasagna deliciosa.

                Ou seja……depois de muitos meses no Perú, com tantas mudanças e situações novas a cada instante, vou ficar sozinha em casa durante algumas semanas e essa ideia não me agrada nada. Mas se há coisinha que aprendi desde que cá cheguei é que as alterações não são forçosamente más ainda que à partida assim pareça (lembro-me ainda tão bem do coração apertado quando a Celsa se foi embora) e que cada mudança é uma porta que se abre para um novo contexto não imaginado previamente. E agora sei que esse mês e meio depois da minha viagem, que será o meu último em Ayacucho, tem um enorme potencial para ser inesquecível. It’s going to be legen….wait for it!

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