Este post vem com duas semanas
de atraso, agora já são seis meses e meio de Perú. Nos últimos tempos tenho
reflectido sobre várias coisas sem ligação muito directa entre si e tenho
sentido dificuldade em conjugá-las no mesmo discurso, por isso estive tanto
tempo calada contrariamente à minha promessa inicial de escrever semanalmente.
Então cheguei à conclusão de que as minhas deambulações mentais têm todas um
ponto comum: o afecto que dou e recebo diariamente nas várias vertentes da
minha vida aqui em Ayacucho, o afecto que este país me desperta e também as
saudades afectuosas que sinto da minha Lisboa. Por isso decidi dar este título
a este post. E apesar de ainda ser cedo para uma avaliação final, já estou mais
perto do fim do que do princípio e já tenho alguns momentos de arrepios
ansiosos ao olhar para as coisas, para os lugares e para as pessoas. É uma
espécie de “pré-síndrome das últimas vezes”. E tenho-me sentido bastante
bipolar, entre o desejo de voltar para aí e o desejo de não sair daqui. Ou
melhor, tenho-me sentido tripolar, porque também sinto que já podia seguir
viagem e começar outra aventura. Estou a tornar-me nómada.
O meu trabalho durante a semana
tem abarcado uma tal variedade de tarefas ao ponto de me fazer sentir que este
período no Perú não é só um projecto de voluntariado mas toda uma experiência
de vida muito completa e rica. Passo as manhãs na sede da Mama Alice a procurar
financiamento para o novo projecto, do qual sou “vice-coordenadora”, e confesso
que é um trabalho bastante aborrecido e frustante. Percorro diariamente páginas
de internet com listas de fundações, empresas e organizações de cooperação
internacional que atribuem fundos a projectos de desenvolvimento social e
humanitário, e para concorrer a esses fundos é preciso seguir tramites muito
precisos, juntar uma catrefada de informação e preencher montanhas e vales de
papelada. E depois, esperar. Comecei a fazer isto há cerca de dois meses e
ainda não há resultados visíveis, nem sabemos quando haverá. É frustante.
Vale-me o consolo de saber a suma importância de angariar fundos para que um projecto
possa avançar, e estou literalmente a trabalhar para ter trabalho pago no
próximo ano.
À tarde, felizmente, não tenho
de estar à frente do computador. Como já vos tinha contado antes, comecei a
trabalhar com os pequeninos do jardim de infância nos nossos centros nos
subúrbios. Passo com eles as tardes de segunda e terça feira. Dou-me conta de
que não tenho a paciência suficiente para não enloquecer com a hiperactividade
e a gritaria, e trabalhar com eles é mais difícil do que dar aulas a
adolescentes (incrível, não é?). Mas simultaneamente estas criaturinhas são
poço infinitos de afecto puro e espontâneo, e quando consigo realizar uma
actividade concreta para além de jogos e puzzles sinto-me muito realizada. E
derrete-me sempre o coração quando me chamam “pofexôia”. Os meus colegas de
trabalho dizem que se posso sobreviver a quinze putos ao mesmo tempo durante
quatro horas, um dia que tenha um filho de cada vez vai ser canja. Será?
Crianças de Educação Inicial no bairro de Keiko Sofia
Crianças de Educação Inicial no bairro de 11 de Junio
Às quartas e quintas continuo
com as aulas de inglês e música aos miúdos da primária. Ultimamente tem sido
difícil manter o ritmo porque eles chegam da escola cheios de trabalhos de casa
e eu passo quase a tarde toda a ajudá-los, sobrando pouco tempo, paciência e
cérebro para mais actividades. O mais curioso é que os próprios miúdos se
lamentam quando não temos tempos para as aulas, apesar do cansaço evidente e da
falta de concentração. Finalmente ao fim destes meses já me sinto parte da casa,
e as crianças e adultos que gravitam à volta dos nossos centros já me conhecem
e me tratam com familiaridade. E sinto uma confiança e segurança no meu
trabalho como nunca tinha sentido antes. Já se tornou tudo bastante fácil.
Contudo, o maior factor de
superação pessoal deste ano tem sido, sem dúvida, as aulas de inglês aos
adolescentes do curso de serralharia da Mama Alice. Do pânico inicial perante
as duas turmas de rapazes peruanos em plena idade do armário passei progressivamente
ao à-vontade e confiança. Com excepção de duas vezes em que tive de ser
autoritária e pôr uns quantos na rua, as aulas decorrem num clima super
divertido e desconstraído. Já aprendi a linguagem e o sentido de humor deles, tenho
conseguido manter a atenção para matérias bastante aborrecidas, e o melhor de
tudo é constatar que aprendem. De aula para aula sabem mais e entendem melhor.
E são tão lindos e amáveis comigo (quando não estão em dia não, o que também
acontece) que já estou perdidamente apaixonada por todos e as sextas-feiras são
o meu dia preferido, para além da proximidade evidente ao fim de semana. E já
tive feedbacks externos de que não sou só eu a disfrutar das aulas. Quem diria
que eu, sem qualquer formação pedagógica nem em línguas, viria para o Perú
trabalhar como professora com todas as idades?
Fora do trabalho também tenho
muitos momentos felizes. Adoro a nossa pequena família, o tempo que passamos
juntos e o quanto este núcleo afectivo contribui para a minha estabilidade
emocional, apesar de às vezes me irritar o predomínio holandês nesta casa e me
sentir um bocadinho isolada. É nessas alturas que sinto mais falta da Celsa e
da nossa época ibérica, e também mais saudades vossas. Mas em qualquer família
há momentos bons e maus, momentos em que quero estar junto e outros em que
preciso de estar só, e no geral a nossa casa é muito feliz. Decidimos dar-lhe
um nome: Misk’i Kawsay Wasi, em quéchua Casa da Boa Vida. Porque é mesmo boa a
nossa vida aqui.
No nosso grupo de amigos feito de mudanças, de pessoas que chegam e são
imediatamente integradas e pessoas que partem deixando um vazio e antecipando a
minha própria partida, já temos tradições arreigadas que me fazem recordar costumes
marcantes dos meus três anos de Rua da Rosa. Uma delas são os “Jueves con
Magia”: começámos a ir todas as quintas-feiras tomar uma cerveja a um dos dois
bares decentes de Ayacucho, o Magia Negra, onde já conhecemos o dono e temos
lugar cativo. Comecei a gostar mais destas noites do que de sair à sexta-feira,
tornou-se uma espécie de pré-fim de semana em que nos encontramos para um
convívio tranquilo, contamos as novidades da semana e estreitamos laços. Estas
noites reforçam o sentimento de que Ayacucho é a minha segunda casa, acalmam um
pouco as saudades de Lisboa, e a variedade de proveniências, personalidades e
experiências pessoais em confronto enriquecem a minha própria experiência
peruana.
Aos domingos temos ido passear.
É renovador sair da cidade e passar um dia no campo, no meio das montanhas, dos
campesinos, de vacas e de ovelhas. Ayacucho está rodeada de preciosidades
naturais e mesmo ao fim de seis meses ainda tenho muito para conhecer.
Huanta, a quarenta minutos de combi a norte de Ayacucho. Caminhada às cascatas e ao Cristo Branco.
Subindo: Floor con Persi e Fredi (rapazes Mama Alice)
Floor, Persi, Fredy e eu, à beira do rio
Niño Bamba, a duas horas de combi a oeste de Ayacucho
Quando não há esplanada, almoça-se à beira da estrada: Inge, eu, Mathilda, Floor e Juan.
Floor, Inge, eu y Mathilda nos banhos termais (ou um tanque de água quente).
Ser peruano é...dormir em qualquer lugar.
Na
semana passada uma amiga com quem não falava desde que saí daí escreveu-me um
email a saber de mim. Entre várias coisas perguntava se eu estou muito feliz e
se o saldo desta experiência está a ser positivo. Respondi-lhe que entre
maravilhas e dificuldades, isto tem sido uma revelação. Eu vim para o Perú
porque precisava de uma mudança e porque me sentia perdida, apesar da vida boa
que tinha em Lisboa. E a maior dádiva que o Perú me deu, até agora, foi
confirmar que sou capaz de fazer o que realmente quiser, mesmo que inicialmente
não saiba como o fazer, e de já saber o que quero fazer a seguir. Pela primeira
vez na minha vida consigo visualizar uma possibilidade de futuro mais além do
curto prazo. Será que é a isto que se chama crescer?
Já não estou perdida. Sinto que agora
é que a minha vida começou, aos vinte e nove anos.