segunda-feira, 29 de abril de 2013

DIA 183 – O PAÍS DOS AFECTOS – 6 MESES DE PERÚ


                Este post vem com duas semanas de atraso, agora já são seis meses e meio de Perú. Nos últimos tempos tenho reflectido sobre várias coisas sem ligação muito directa entre si e tenho sentido dificuldade em conjugá-las no mesmo discurso, por isso estive tanto tempo calada contrariamente à minha promessa inicial de escrever semanalmente. Então cheguei à conclusão de que as minhas deambulações mentais têm todas um ponto comum: o afecto que dou e recebo diariamente nas várias vertentes da minha vida aqui em Ayacucho, o afecto que este país me desperta e também as saudades afectuosas que sinto da minha Lisboa. Por isso decidi dar este título a este post. E apesar de ainda ser cedo para uma avaliação final, já estou mais perto do fim do que do princípio e já tenho alguns momentos de arrepios ansiosos ao olhar para as coisas, para os lugares e para as pessoas. É uma espécie de “pré-síndrome das últimas vezes”. E tenho-me sentido bastante bipolar, entre o desejo de voltar para aí e o desejo de não sair daqui. Ou melhor, tenho-me sentido tripolar, porque também sinto que já podia seguir viagem e começar outra aventura. Estou a tornar-me nómada.

                O meu trabalho durante a semana tem abarcado uma tal variedade de tarefas ao ponto de me fazer sentir que este período no Perú não é só um projecto de voluntariado mas toda uma experiência de vida muito completa e rica. Passo as manhãs na sede da Mama Alice a procurar financiamento para o novo projecto, do qual sou “vice-coordenadora”, e confesso que é um trabalho bastante aborrecido e frustante. Percorro diariamente páginas de internet com listas de fundações, empresas e organizações de cooperação internacional que atribuem fundos a projectos de desenvolvimento social e humanitário, e para concorrer a esses fundos é preciso seguir tramites muito precisos, juntar uma catrefada de informação e preencher montanhas e vales de papelada. E depois, esperar. Comecei a fazer isto há cerca de dois meses e ainda não há resultados visíveis, nem sabemos quando haverá. É frustante. Vale-me o consolo de saber a suma importância de angariar fundos para que um projecto possa avançar, e estou literalmente a trabalhar para ter trabalho pago no próximo ano.

                À tarde, felizmente, não tenho de estar à frente do computador. Como já vos tinha contado antes, comecei a trabalhar com os pequeninos do jardim de infância nos nossos centros nos subúrbios. Passo com eles as tardes de segunda e terça feira. Dou-me conta de que não tenho a paciência suficiente para não enloquecer com a hiperactividade e a gritaria, e trabalhar com eles é mais difícil do que dar aulas a adolescentes (incrível, não é?). Mas simultaneamente estas criaturinhas são poço infinitos de afecto puro e espontâneo, e quando consigo realizar uma actividade concreta para além de jogos e puzzles sinto-me muito realizada. E derrete-me sempre o coração quando me chamam “pofexôia”. Os meus colegas de trabalho dizem que se posso sobreviver a quinze putos ao mesmo tempo durante quatro horas, um dia que tenha um filho de cada vez vai ser canja. Será?

 Crianças de Educação Inicial no bairro de Keiko Sofia






 
Crianças de Educação Inicial no bairro de 11 de Junio






                Às quartas e quintas continuo com as aulas de inglês e música aos miúdos da primária. Ultimamente tem sido difícil manter o ritmo porque eles chegam da escola cheios de trabalhos de casa e eu passo quase a tarde toda a ajudá-los, sobrando pouco tempo, paciência e cérebro para mais actividades. O mais curioso é que os próprios miúdos se lamentam quando não temos tempos para as aulas, apesar do cansaço evidente e da falta de concentração. Finalmente ao fim destes meses já me sinto parte da casa, e as crianças e adultos que gravitam à volta dos nossos centros já me conhecem e me tratam com familiaridade. E sinto uma confiança e segurança no meu trabalho como nunca tinha sentido antes. Já se tornou tudo bastante fácil.

                Contudo, o maior factor de superação pessoal deste ano tem sido, sem dúvida, as aulas de inglês aos adolescentes do curso de serralharia da Mama Alice. Do pânico inicial perante as duas turmas de rapazes peruanos em plena idade do armário passei progressivamente ao à-vontade e confiança. Com excepção de duas vezes em que tive de ser autoritária e pôr uns quantos na rua, as aulas decorrem num clima super divertido e desconstraído. Já aprendi a linguagem e o sentido de humor deles, tenho conseguido manter a atenção para matérias bastante aborrecidas, e o melhor de tudo é constatar que aprendem. De aula para aula sabem mais e entendem melhor. E são tão lindos e amáveis comigo (quando não estão em dia não, o que também acontece) que já estou perdidamente apaixonada por todos e as sextas-feiras são o meu dia preferido, para além da proximidade evidente ao fim de semana. E já tive feedbacks externos de que não sou só eu a disfrutar das aulas. Quem diria que eu, sem qualquer formação pedagógica nem em línguas, viria para o Perú trabalhar como professora com todas as idades?

                Fora do trabalho também tenho muitos momentos felizes. Adoro a nossa pequena família, o tempo que passamos juntos e o quanto este núcleo afectivo contribui para a minha estabilidade emocional, apesar de às vezes me irritar o predomínio holandês nesta casa e me sentir um bocadinho isolada. É nessas alturas que sinto mais falta da Celsa e da nossa época ibérica, e também mais saudades vossas. Mas em qualquer família há momentos bons e maus, momentos em que quero estar junto e outros em que preciso de estar só, e no geral a nossa casa é muito feliz. Decidimos dar-lhe um nome: Misk’i Kawsay Wasi, em quéchua Casa da Boa Vida. Porque é mesmo boa a nossa vida aqui.


No nosso grupo de amigos feito de mudanças, de pessoas que chegam e são imediatamente integradas e pessoas que partem deixando um vazio e antecipando a minha própria partida, já temos tradições arreigadas que me fazem recordar costumes marcantes dos meus três anos de Rua da Rosa. Uma delas são os “Jueves con Magia”: começámos a ir todas as quintas-feiras tomar uma cerveja a um dos dois bares decentes de Ayacucho, o Magia Negra, onde já conhecemos o dono e temos lugar cativo. Comecei a gostar mais destas noites do que de sair à sexta-feira, tornou-se uma espécie de pré-fim de semana em que nos encontramos para um convívio tranquilo, contamos as novidades da semana e estreitamos laços. Estas noites reforçam o sentimento de que Ayacucho é a minha segunda casa, acalmam um pouco as saudades de Lisboa, e a variedade de proveniências, personalidades e experiências pessoais em confronto enriquecem a minha própria experiência peruana.

                Aos domingos temos ido passear. É renovador sair da cidade e passar um dia no campo, no meio das montanhas, dos campesinos, de vacas e de ovelhas. Ayacucho está rodeada de preciosidades naturais e mesmo ao fim de seis meses ainda tenho muito para conhecer.

Huanta, a quarenta minutos de combi a norte de Ayacucho. Caminhada às cascatas e ao Cristo Branco. 

Subindo: Floor con Persi e Fredi (rapazes Mama Alice)











 
 Floor, Persi, Fredy e eu, à beira do rio






Niño Bamba, a duas horas de combi a oeste de Ayacucho






 Quando não há esplanada, almoça-se à beira da estrada: Inge, eu, Mathilda, Floor e Juan.


 Floor, Inge, eu y Mathilda nos banhos termais (ou um tanque de água quente).


Ser peruano é...dormir em qualquer lugar.

                Na semana passada uma amiga com quem não falava desde que saí daí escreveu-me um email a saber de mim. Entre várias coisas perguntava se eu estou muito feliz e se o saldo desta experiência está a ser positivo. Respondi-lhe que entre maravilhas e dificuldades, isto tem sido uma revelação. Eu vim para o Perú porque precisava de uma mudança e porque me sentia perdida, apesar da vida boa que tinha em Lisboa. E a maior dádiva que o Perú me deu, até agora, foi confirmar que sou capaz de fazer o que realmente quiser, mesmo que inicialmente não saiba como o fazer, e de já saber o que quero fazer a seguir. Pela primeira vez na minha vida consigo visualizar uma possibilidade de futuro mais além do curto prazo. Será que é a isto que se chama crescer?

Já  não estou perdida. Sinto que agora é que a minha vida começou, aos vinte e nove anos.

2 comentários:

  1. Me encanto encontrar este blog, yo soy peruano, pero vivo en Brasil ya mas o menos 1 año y me identifico mucho contigo ya que tambien quiero una mudanza en mi vida, estoy tratando de encontrarme a mi mismo y tambien llegan momentos que me pregunto "sera que es esto que se llama crecer?", yo hasta ahora no lo se, pero de lo que estoy seguro es que no me arrepiento de lo que estoy haciendo hasta ahora . :)

    Es una linda columna la que escribiste, me alegra saber que hay gente que ayuda a otra y es feliz, extraño mucho esas cosas simples de la sierra, yo vivia en huancayo y cada vez que necesitaba salir del caos tenia un lugar cerca a donde ir, y era el campo de la sierra, a pesar de que Brasil es realmente lindo, no encuentro esa tranquilidad y sensacion linda que me daba la sierra, definitivamente cuando las cosas vallan mejor aqui, regresaré a mi pais y ayudare de alguna forma a mi gente de la sierra.
    Muchas gracias por publicar estas fotos lindas, guste mucho de esta columna.

    Te felicito!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Hola Carlos, muchas gracias por tu comentário, qué bien que te gustó mi blog! Ya son 5 meses desde que volvi a mi Portugal y aunque estoy feliz de estar de nuevo cerca de mi familia y mis amigos no hay un solo dia que no piense a mi Peru. Fue una felicidad pura y real la que vivi allá y deseo volver. No creo que voy a volver para vivir, pues que hay todavia mucho mundo para conocer y en verdad yo soy una viajera de espirito, pero Peru es mi segunda casa y cada dia que estuve en tu país me senti en casa.
      Te deseo mucha suerte para tu descubierta personal y tu vida!
      Saludos portugueses.

      Eliminar