E aqui já ninguém me pode ouvir
dizer isto, tantas foram as vezes que repeti os dejá-vus que tive de Lisboa em
Junho durante estes dias de loucura em Ayacucho. A cidade encheu-se de
forasteiros peruanos e estranjeiros, todos os dias havia festa na rua e todas
as noite uma procissão, e eu andava eufórica. Aqui não é hábito conviver na
praça à noite como fazemos no Camões, algo de que eu sinto muita falta, mas durante
a Semana Santa vinguei-me.
Para além das celebrações
religiosas e populares foi uma semana de aniversários. Iniciámos o programa no sábado dia vinte e três com a festa dos vinte e
nove anos da Inge, juntámos cerca de trinta pessoas na nossa sala entre amigos
e colegas de trabalho, e depois fomos cumprir a nossa tradição de sábado –
dançar no Maxx’ho. Nessa noite recebi um elogio: já fiz progressos na salsa!
(ou seja, já não piso pés). O dia seguinte amanheceu difícil porque tivémos de
limpar os restos da festa, e o chão da nossa sala estava pior do que o chão da
discoteca. Decidimos unanimemente que da próxima vez que convidarmos amigos cá
para casa têm de deixar os sapatos à porta.
A preparação do bolo com Floor
Feliz cumpleaños Inge!
Casa de miúdas: eu, Floor, Mathilda y Inge
Era Domingo de Ramos, o primeiro dia oficial da Semana Santa. Já se
sentia o aumento da população e o ambiente festivo. Ao final da tarde houve uma
enorme procissão numa das principais ruas da cidade, a desembocar na Plaza de
Armas, com uma multidão de crianças, adultos e idosos empunhando ramos de
palmeira e acompanhando uma estátua de Jesus montada num burro. Uma estátua de
cerâmica atada a um burrinho verdadeiro. A emoção das pessoas era palpável,
tocavam na estátua como se fosse Jesus em pessoa, cantando e até chorando.
Fiquei impressionada e tive um pouco do sentimento religioso que vivo neste
período na Charneca. Este primeiro dia foi rematado em beleza com uma
verdadeira pizza à italiana. Che goduria!
A Procissão dos Ramos
Nos primeiros dias da semana decidimos estar calminhas, dormir cedo e
acumular energias para o que se avizinhava. Quinta e sexta-feira santa são
feriados no Perú, e na quarta à noite há outra grande procissão pelas ruas da
cidade que dramatiza a despedida de Jesus com Maria e São João: três andores
com cada uma das estátuas entram na Plaza de Armas por lugares opostos e
encontram-se em frente à Catedral. Esta é a noite das alfombras, uma tradição
muito peculiar: as instituições, empresas e associações públicas e privadas da
cidade alugam um quadrado no chão da praça para criar um desenho alusivo à
Semana Santa e à sua organização. Este é um modo de adornar a praça para a
festa e fazer auto-publicidade, e a Mama Alice também realizou a sua alfombra.
Os desenhos são feitos com serradura, pó colorido, flores, sementes e confetis,
toda a praça fica revestida deste tapete artístico resultado do trabalho
minucioso de toda uma tarde, para depois a procissão passar por cima e destruí-lo
em meia hora. É uma tradição muito antiga e as pessoas nem questionam que
desenhos tão bonitos e tanta preparação prévia vão desaparecer num instante
debaixo dos pés de centenas de outras pessoas. No Perú a tradição ainda é o que
era, e é muito forte.
A alfombra Mama Alice
Eu, Erik, Floor y Robinson (adolescentes da casa de acolhimento Mama Alice)
Os "meus meninos" de Serralharia
Algumas alfombras na Plaza de Armas
A procissão do Encuentro: andor de Jesus
Esta foi a primeira noite de verdadeira festa, depois de jantarmos na
Feira Gastronómica que houve durante toda a semana com especialidades típicas
da sierra ayacuchana, fomos para o pré-aniversário na casa do Juan, que fez
trinta anos no dia vinte e oito mas quis festejar condignamente já desde a
noite anterior. Desta vez a discoteca foi caseira e o chão que se sujou foi o
dele. Ah!
O plano para quinta-feira santa, feriado, era dormir muito e cortar a
relva do nosso jardim. Desde que tinha chegado, a Floor andava a magicar ideias
para reabilitar o relvado das traseiras da nossa casa, que até à data era uma
selva semi-amazónica e sem uso. Como no sábado seguinte iria ser o seu
aniversário e não queríamos de novo uma multidão dentro de casa, decidimos
arranjar o jardim para fazer um churrasco. Mas os planos saíram-me furados:
acordei cedíssimo com o calor de verão e a chinfrineira na rua (em Ayacucho a
festa na rua começa cedo e acaba tarde, ou melhor, muito cedo), e andei toda a
manhã meio zombie a arrancar tufos de relva. Tínhamos trazido a máquina de
cortar da Mama Alice e pedimos ao Robinson, um dos rapazes da casa de
acolhimento, para nos vir ajudar. À hora de almoço ainda só íamos a um terço e
começámos a perceber que o prazo estava curto.
A nossa selva semi-amazónica
Robinson e Floor tentando dominar a máquina!
Por esta altura eu já tinha decidido que depois de comer ia dormir uma
daquelas sonecas das boas. Mas no Perú os planos mudam a qualquer momento, e eu
ainda não sabia que estava destinada a dormir pouco e trabalhar muito durante a
Semana Santa. Aqui há uma tradição de vender umas t-shirts vermelhas típicas
desta época, que toda a gente compra como souvenir e para vestir para a largada
de touros no sábado de manhã. Umas semanas antes o Juan e o Pipo tinham dito
que iam fazer um interpretação moderna dos desenhos das t-shirts para vender na
rua durante estes dias e ganhar algum dinheiro extra. Na altura, por
brincadeira, tinham dito que precisavam de meninas bonitas para os ajudar a
vender, e eu, por brincadeira, tinha-me voluntariado. E nunca mais me lembrei
dessa conversa até quinta-feira santa, no momento em que eu já sonhava com a
minha cama e o Juan me mandou uma mensagem a perguntar se ainda queria vender
t-shirts com eles.
Foi uma das melhores experiências que tive aqui em Ayacucho até à data.
Vender na rua nunca foi, de todo, a minha especialidade. Mas tem muita piada.
Ao fim de três dias eu já tinha o à-vontade de uma vendedora de mercado e até
já apregoava. Vendemos cerca de seiscentas t-shirts na rua principal, conheci
imensa gente, amigos de amigos e o vocalista dos La Mente, uma banda de reggae
de Lima que vieram dar um concerto em Ayacucho nessa noite. E não querendo ser
presunçosa (mas sendo-o!), as nossas t-shirts eram as mais bonitas e
venderam-se em menos de um fósforo.
Vendendo t-shirts con Pipo e Juan
O nosso "ponto de venda", com César
"Olha a t-shirt do Jala Toro, estão-se a acabar!" com Floor e Stefani
Nessa noite eu tive de vir a casa dormir uma hora depois do jantar
antes de irmos para o concerto dos La Mente. Era num espaço ao ar livre fora da
cidade que eu não conhecia. Que tipo de música era, eu também não conhecia. Estava
uma filaça gigante de gente para entrar e eu sem saber o que nos esperava. Foi,
por isso, uma brutal surpresa chegar a esse recinto em ambiente de festival para
um concerto de reggae e ska! Eu estava tão feliz! Os “maus” hábitos de Lisboa
fazem-me augar concertos aqui neste fim do mundo, onde as únicas bandas que
chegam são de salsa e wayno. Há mais de seis meses que eu não ia a um concerto ou
festival e precisamente nesses dias andava a lamentar-me em conjunto com a
Inge, que também é viciada em música ao vivo na Holanda. Adorei o concerto.
Adorei o ambiente. Divertimo-nos muito! À meia noite festejámos o aniversário
da Nati, psicóloga limenha que trabalha conosco na Mama Alice. Foi o terceiro
da semana, e ainda não seria o último.
Entretanto o Juan e o Pipo tinham-me encarregado de atirar uma das
nossas t-shirts para o palco durante o concerto, mas não foi preciso porque o
vocalista reconheceu-me e veio recebê-la em mãos à beira do palco e usou-a
durante o concerto. A melhor publicidade possível! Fui considerada oficialmente
a melhor vendedora de sempre :) e no final do concerto ainda voltei à fala com
o vocalista e também conheci o baixista. Estas coisas não me acontecem em
Portugal!
Publicidade grátis: Ricardo, o vocalista dos La Mente, com uma t-shirt das nossas durante o concerto
Sexta-feira santa amanheceu cedo e de novo com poucas horas de sono. O
cansaço já me começava a pesar. Acabámos o arranjo do jardim e deixámos de ter
uma selva tropical para passar a ter uma savana rala e amareliça, com uma
montanha de feno cortado que tínhamos de levar para algum lado, mas não sabíamos
para onde nem como. Ainda agora, uma semana depois, temos esse monte no jardim,
que entretanto já começou a criar raízes pelas chuvadas que continuam a cair. O
tempo mudou outra vez e já não está o calor de verão que durou toda a Semana
Santa e me fez andar de t-shirt e calções e sentir-me, de verdade, no Santo
António em Junho.
Neste dia vendemos t-shirts até à meia-noite e houve momentos de pura
loucura. As pessoas amontoavam-se à nossa volta, tínhamos de trabalhar em
equipa para não perder o controlo. Era a véspera da largada de touros, o ponto
alto da Semana Santa e da tradição de vestir de vermelho, havia muita gente que
se tinha guardado para a última para comprar a sua t-shirt, e estava tudo
louco. Eu estava tão cansada que nem tive energia para furar a multidão e
assistir à procissão das velas com o andor do Cristo Muerto. Recusei, com
bastante pena, uma festa de electrónica para angariação de fundos da ONG Los
Gorriones e corri para a minha caminha. O dia seguinte previa-se longo e duro,
e apesar da minha promessa de festejar todas as noites da Semana Santa fui
fisicamente forçada a uma pausa. Mas, mais uma vez, o plano não se cumpriu: os
nossos vizinhos estiveram em alegre rambóia com música aos altos berros até às
quatro da manhã e só nessa altura pude finalmente dormir. Ou seja, mais uma
noite curta. Humpf!!
Sábado santo é o dia principal da Semana Santa. Estava um calor de
verão e às dez da manhã chegámos à Plaza de Armas pejada de gente. Vou dizê-lo
outra vez: parecia o largo da Sé à meia noite de Santo António, em que nem se
pode caminhar. Só que era de dia. A largada de touros – o Jala Toro – começou
numa alameda lateral da cidade e os touros eram conduzidos por cavaleiros até à
Plaza, rodeados da multidão em alvoroço. Nunca tinha estado numa largada de
touros, e vi os animalotes bem de perto. Pura adrenalina! Na praça os bombeiros
regavam o pessoal à mangueirada, por todo o lado havia bandas a tocar e
pirâmides humanas. O ambiente deste dia é difícil de descrever, foi inesquecível.
Passámos o dia na rua. Foi o melhor dia que vivi em Ayacucho, só superado pelas
viagens.
A Plaza de Armas na manhã de sábado santo
À espera do Jala Toro com Erik, Robinson, Inge e Floor
Pirâmides humanas na Plaz
Jala Toro
Banhos grátis na Plaza de Armas
Dançar na Plaza de Armas...de dia.
Ao final do dia regressámos a casa e começámos a preparar o churrasco
de aniversário da Floor. Foi uma noite tranquila com amigos, comida e música no
nosso jardim renovado. O tempo passou muito depressa, quando demos conta já
eram duas da manhã e decidimos ir para a praça esperar a grande procissão da
Amañecida, que encerra as festividades da Semana Santa. Por uma noite, a Plaza
de Armas teve vida durante a noite e eu senti-me, de novo, em Lisboa. Havia
fogueiras, fogo preso e gente dançando por todo o lado. Parecia o Camões :)
Por fim, a procissão. Um andor com vários metros de altura, revestido
de velas e coroado pela estátua de Cristo Ressuscitado, carregado por cerca de
duzentas pessoas (true story!) saiu da catedral ainda estava escuro e deu a
volta à praça antecedio, rodeado e seguido por uma multidão em extase. Famílias
inteiras saíram à rua para participar nesta procissão que demorou cerca de uma
hora a voltar à catedral. Já era de dia quando começou a missa em quéchua, a
emoção das pessoas era, de novo, palpável, e estávamos todos siderados e sem
palavras. Foram momentos impressionantes.
E assim terminou a semana mais famosa de Ayacucho. Já percebi porquê!
No domingo a cidade esvaziou-se pouco a pouco dos forasteiros, o silêncio
apoderou-se das ruas e nós passámos o dia em casa a dormir e a recuperar. Bom,
na verdade, demorou bem mais do que um dia a recuperar. Durante todo a semana
seguinte andei lenta, dorminhoca e nostálgica: por mim, Semana Santa podia ser
uma vez por mês. Estou muito feliz por estar aqui nesta altura e ter vivido
esta experiência!
PS: somos cinco na casa! No domingo chegou um novo voluntário para a
Mama Alice, o Rutger, também holandês, para quebrar as nossas rotinas femininas
e obrigar-nos a nova flexibilidade mental para nos adaptarmos a novas dinâmicas
interpessoais. No Perú não há rotina, não há aborrecimento. Quando penso que
algo está estabelecido e seguro, aí vem uma mudança para me trocar os planos.
Sem comentários:
Enviar um comentário