A vida é cíclica. Há momento e
fases que se repetem muito tempo depois e provocam uma sensação de dejá-vu. Ou
melhor, como diz uma querida amiga minha, a vida é espiralada. Porque quando
essas fases ou momentos se repetem nós já não somos exactamente os mesmos, nem
estamos exactamente na mesma situação, pela passagem do tempo e a sucessão
inevitável dos acontecimentos. Estamos no mesmo lugar mas uns metros mais acima
no caminho da nossa evolução pessoal. É o que eu estou a sentir agora.
Saí de Ayacucho na segunda-feira
dia vinte e dois de julho de dois mil e treze às dez da noite no autocarro da
Cruz del Sur para Lima, depois de nove meses e nove dias nesta cidade que se
tornou a minha segunda casa. Agora estou de volta ao seminário dos Missionários
Combonianos aqui na capital, onde passei os meus primeiros dias no Perú. É
curioso regressar aqui tantos meses depois e recordar o que senti inicialmente
neste quarto, nesta casa, com estas pessoas. Foram os meus primeiros amigos
aqui, e lembro-me como estava assustada, nervosa e surpreendida com tudo à
minha chegada, e de como a hospitalidade e afecto destes seminaristas foi
essencial para me sentir segura e confiante para me atirar de cabeça à aventura
que me esperava. Voltar aqui nove meses depois com tanto Perú na bagagem, nas
últimas semanas de permanência neste país e já nada assustada, nervosa nem
surpreendida, tão simplesmente integrada e à-vontade, reforça-me a ideia de que
de facto a vida não é cíclica, é espiralada. Porque estou no mesmo lugar, a
terminar um ciclo, outra vez em Lima no final como estive ao princípio, e
experimento a contradição do dejá-vu com a diferença das sensações. Eu já não
sou definitivamente a mesma que era quando cheguei, nem Lima nem o Perú serão
nunca mais estranhos e assustadores para mim.
A última semana em Ayacucho foi
a mais intensa e cansativa do meu tempo no Perú. Trabalhei mais nesta semana do
que em todas as outras, e experimentei stress pela primeira vez. Tinha de
deixar uma série de trabalhos terminados, fazer relatórios e despedir-me das
crianças nos bairros. Acordei cedo e deitei-me tarde, tive almoços e jantares
fora quase todos os dias e passei a semana com a clara sensação de que não me ia
chegar o tempo para fazer tudo o que me faltava.
Já há algum tempo que eu andava
a preparar os miúdos para a iminência da minha partida e a lidar com refunfos e
lamentos momentaneos quando fazia referência a isso, antecipando o drama da
despedida com a frase “No te vayas, profesora, no te vayas!” De modo que quando
chegou a última semana, já todos sabiam que não haveria “a próxima aula”. No
entanto, a minha preparação não foi nem de longe suficiente para o drama
efectivo da despedida. Os primeiros dias foram mais tranquilos porque os
meninos do jardim de infância, com quem trabalhava às segundas e terças feiras,
não têm muita consciência da ausência nem total noção da separação, o que
tornou a despedida muito superficial e abstracta, e lidei bastante bem com a
coisa. Na quarta-feira bateu-me em cheio no peito que era a última vez que
estava a olhar para os meus alunos do bairro de Keiko Sofia, e confesso que fui
indesculpavelmente covarde porque não tive coragem para me despedir
convenientemente. Só disse adeus aos que vinham perguntar quando era a próxima
aula, os que se foram embora sem dizer nada não chegaram a recordar-se de que
eu já não voltava. Senti-me mal depois, por não ter ido falar pessoalmente com
cada um deles para me despedir. Não fui capaz. Sabia o histerismo que ia
provocar e naquele instante não me senti capaz de lidar com isso. E quando
apanhei pela última vez o autocarro de regresso ao centro da cidade, vendo as
ruas de terra batida e casas de tijolo empoeirado, sabia que não tinha estado à
altura da situação, e que nas próximas semanas aqueles miúdos vão perguntar por
mim aos outros professores e sentir-se enganados por eu me ter ido embora sem
me despedir. Bolas :(
Mas no bairro de Once de Junio
não me deixaram fugir. Estive toda a tarde de quinta-feira a ajudar crianças e
adolescentes a fazer os trabalhos de casa de Inglês, foi uma das tardes mais
cansativas e mais divertidas que passei naquele bairro. Estavam lá todos os
meus meninos queridos e os adolescentes que conheço melhor, e senti-me
extremamente realizada por conseguir ensinar-lhes alguma coisa e ajudá-los
efectivamente a aprender. Os refunfos e lamentos foram-se manifestando ao longo
da tarde, de vez em quando alguém se lembrava de que era a minha última vez ali
e vinha agarrar-se a mim a choramingar “No te vayas, profesora, no nos dejes,
quedate com nosotros!” (e o meu coração mirrando, mirrando, até implodir numa
bolinha de saudade). Uma das meninas disse-me que tinha comprado uma pintaínha
para me oferecer, pediu-me para a levar para Portugal e lhe pôr o nome dela
para nunca me esquecer. Depois da surpresa e da ternura tive de lhe explicar
que não podia levar um frango na minha mala no avião, não só porque era
proibido mas também porque obviamente morreria. Não foi fácil convencê-la, mas
por fim lá aceitou em ficar ela com a bicha e lhe pôr o meu nome, para nunca se
esquecer de mim.
A
certa altura saí para ir à casa de banho e de caminho fiquei à conversa com uma
das minhas colegas da Mama Alice. Quando voltei à sala da biblioteca tinha uma
multidão de crianças a bater palmas para mim. Foi um choque! Eu não estava nada
à espera daquilo! Ver ali todos os meus alunos e os outros meninos que não estavam
nas minhas aulas mas que já conheço tão bem, todos juntos a gritar por mim,
fez-me cair na realidade: aquilo era uma surpresa de despedida, e dali já não
saía sem abraços, beijos e lágrimas. Então o Ferreol, o professor responsável
pelo centro daquele bairro, disse algumas palavras que eu já nem recordo muito
bem porque já estava a chorar perdidamente, mas retive que as crianças iam ter
muitas saudades minhas e tinham andado a semana toda a ensaiar (bem
escondidos!) a última canção que eu lhes tinha ensinado há uns meses, uma
canção em quechua, para me cantar como presente de despedida. E depois
cantaram. E depois voltaram a cantar porque eu queria fazer um video para não
perder nunca mais aquele momento. Foi indescritível, ainda agora me arrepio ao
recordar. E depois das palmas vieram os abraços, os beijos e as lágrimas.
Pediram-me infinitamente que não me fosse embora, perguntaram porque tinha de
ir, e quando lhes recordei que sou voluntária e não posso viver para sempre sem
um salário algumas das meninas começaram a dizer que me pagavam um sol por dia
para eu poder continuar a trabalhar ali! O que é que eu posso contrapor a este
argumento?! Despedir-me dos amigos e dos companheiros de trabalho foi muito difícil,
mas o pior foi sem dúvida das crianças, porque não entendem as situações nem
têm noção da inevitabilidade da vida. Para os meus alunos, não era obrigatório
nem lógico nem inevitável que eu tivesse de me ir embora, e na cabeça deles
pagar-me um sol por dia resolvia a situação. E eu estive quase quase para
aceitar!! Vim embora do bairro quase às oito da noite acompanhada pelo meu
aluno David até parte do caminho, enquanto atrás ficavam um grupo de meninas a
olhar para mim de lágrimas nos olhos até eu virar a esquina. Nunca me
esquecerei dessa imagem nem de como me doía o coração.
No dia seguinte esperava-me
outra tortura auto-infligida, e confesso que nesta fase da semana eu já estava
a desenvolver uma recusa insconsciente às despedidas e já tinha vontade de
fugir sem dizer adeus a ninguém. Foi a minha última aula de inglês com os
rapazes do curso de serralharia do turno da manhã e do turno da tarde. Nos
últimos meses estes adolescentes tornaram-se as “meninas dos meus olhos” e foi
provavelmente o trabalho mais proveitoso de todo o meu voluntariado na Mama
Alice. Desenvolvemos uma cumplicidade tal que estas amostras de homens rebeldes
e durões se tornaram do mais dócil e acessível que experimentei aqui em
Ayacucho. De todo o afecto que recebi estes meses, o deles foi o que mais me
encheu o ego. E já queria adoptá-los a todos e levá-los comigo para Portugal.
Ayacucho fez-me mãe do coração não só de crianças, mas também de adolescentes,
vejam lá vocês!
Nesta última aula
fizémos um video deles a cantar “Hey Jude” dos Beattles, que andávamos a
praticar há duas semanas para ficar de recordação destes meses de aulas. Foi
uma espécie de “exame final”, em que o objectivo era traduzir o texto, entender
o significado, identificar funções gramaticais (especificamente pronomes,
verbos e adjectivos) e treinar a pronuncia. No final o resultado não estava
digno de um coro profissional, mas o esforzo e o esmero que eles puseram na voz
e nas palavras (estamos a falar de rapazes de rua, alguns mal sabem falar
espanhol!) deram um resultado brilhante. Eu não chorei, pelos menos dos olhos não
chorei. Mas o coração estava afogado de orgulho. E para a despedida, bolo e
refrigerante, beijos abraços e saudades, e uma pulseira feita por um deles e um
porta-chaves como presentes para mim. Não tem preço ouvir um cavalão de
dezassete anos, que já andou a roubar na rua e foi apanhado, dizer com olhos
ternos: “Te vamos a estrañar un montón profesora, te queremos mucho.” Oh
páááá!!
Turno da tarde
Nessa noite convidei a Inge e os
rapazes da casa de acolhimento da Mama Alice para jantar num restaurante de
frango na brasa, algo tão peruano como Machu Pichu. Aqui no blog nunca cheguei
a falar muito destes miúdos, ou pelo menos a referência que fiz não espelha de
modo algum a relação que criei com eles nos últimos quatro meses e o quão especiais
eles são para mim. Estamos a falar de rapazes que viveram na rua durante anos,
que vêm de famílias desfeitas sem qualquer estabilidade nas relações nem nos
afectos, e que em momentos diferentes
das suas vidas viveram na nossa casa de acolhimento. Alguns deles já não estão
lá mas continuam ligados à Mama Alice e às actividades que realizamos, e foi
assim que eu tomei contacto com eles e fui ganhando conhecimento, apesar de não
trabalhar directamente na casa nem com eles. São miúdos adoráveis entre os
quinze e os vinte anos, com variados problemas de irresponsabilidade,
transgressão de regras, abuso de alcoól e consumo de drogas, mas doces e
carinhosos como eu não poderia imaginar, são os “meninos mimados” da Fredy,
como lhes chamamos. Eles procuram muitas vezes os trabalhadores mais jovens da
Mama Alice para conversar, falar sobre a vida e pedir conselhos, e os
voluntários gringos são um alvo muito atractivo. Aproveitando esse facto acabei
por desenvolver uma relação de confiança diferente com cada um deles, mas a
todos se abria um sorriso no rosto quando me encontravam na rua ou na oficina,
e despedir-me deles e pensar que não os vou voltar a ver tão cedo partiu-me o
coração. Assim que quis despedir-me convenientemente, e fui jantar com a Inge e
seis deles (tinha convidado oito mas não vieram todos). Foi muito bom! Vê-los
felizes a comer com gosto e na conversa uns com os outros sob o olhar carinhoso
da Inge e a minha baba total tornou aquela noite num dos momentos mais
especiais da minha semana das despedidas. E confirmei o que já sentia há vários
meses: com o afecto das crianças e dos adolescentes nunca me sentirei, nem
estarei de facto, sozinha. Nunca.
Depois
do jantar fomos a casa do Otchoa, o rapaz francês que trabalha na Cruz Vermelha
e tem a melhor casa de Ayacucho, com o grupo de amigos mais íntimos. Nos
primeiros meses da minha chegada cá ganhámos a tradição de nos reunirmos na
casa dele às sextas-feiras, que sempre foram noite tranquilas em que o pessoal
está cansado e só quer beber um copo em convívio e ir cedo para casa. Mas
depois com o passar dos meses perdemos esse costume e já há muito, muito tempo
que eu não ia a casa dele. Por isso pedi-lhe se podíamos repetir o evento pela
última vez e fazer uma festa de “pré-despedida”, já que a grande festa com
todos os amigos e conhecidos seria no dia seguinte na minha casa. É tão curiosa
a sensação de familiaridade total com este pequeno grupo de pessoas que eu já
conheço tão e com quem me sinto tão eu mesma, sem complexos nem vergonhas.
Quando penso que só os conheço há nove meses e que antes deles havia toda uma
vida em Lisboa, e um grupo de pessoas que também eram a minha família e com
quem experimentava a mesma sensação, parece-me que tudo isso passou há séculos.
E a ideia de que aquela noite de sexta-feira com cervejas e música estava a ser
a última da minha vida com eles (mesmo que eu volte a Ayacucho no futuro, já
nada será igual) revestia-se de irrealidade e eu não conseguia assimilar.
Adoro-os a todos, cada um com a sua personalidade e as suas manias, e adoro
sentir-me tão bem e tão feliz com eles. Este grupo de pessoas são, sem dúvida,
um dos factores primordiais para que Ayacucho seja casa para mim. Obrigada à Tania, à Inge, à Stefanni, ao
Otchoa, ao Juan, ao Akira, à Sol, à Nati, ao Willie e à Neus.
A noitada não foi longa porque o
dia seguinte seria muito ocupado pelo que eu tinha de acordar cedo, e já estava
em stress quando fui dormir. Era o sábado da minha festa de despedida, mas até
chegar à noite eu tinha demasiadas coisas para fazer: acabar um documento sobre
o novo projecto para deixar à Fredy, limpar a casa, ir ao mercado, cozinhar
para a festa, decorar a sala e terminar todos os preparativos. Estava um dia
solarengo e quente apesar de supostamente ser inverno (na sierra do Perú as estações são muito estranhas) e as horas passaram
rapidamente. Pouco antes das oito chegou uma das minhas colegas de trabalho com
a filha bebé, e eu tive de a deixar sozinha em casa porque ainda me faltava ir
à oficina da Mama Alice buscar umas cadeiras de plástico emprestadas. Depois
chegaram mais três colegas, e foram as únicas na festa durante duas horas… até
que entretanto chegou a Inge, e mais tarde por volta das onze começou a chegar
o pessoal todo. Eu não estava preocupada porque já sei como são as coisas no
Perú: convidas para as oito, começam a chegar às dez. Pelo que a festa foi
passando por diversas fases, inicialmente colegas de trabalho com filhos, e
depois os amigos. Acabámos a noite a cumprir pela última vez a tradição de sábado:
dançar no Maxx’oh. E foi tão fixe :)
No domingo acordei cheia de
energia apesar das poucas horas de sono e consegui arrumar e limpar os
destroços de guerra antes de ir almoçar com o pessoal todo. Fomos a um
restaurante pouco conhecido no meio de um bairro, chamado Pátio Escondido por
razões óbvias, que tem mesas no jardim e a melhor carne de frango e porco de
Ayacucho. Quando cá cheguei em outubro de dois mil e doze vim almoçar aqui no
primeiro domingo, com a Celsa, a Tania, o Juan e o Juan Manuel, um rapaz
mexicano que entretanto foi embora. Voltei cá algumas vezes durante estes
meses, mas quis vir especificamente no último domingo porque tinha um
significado afectivo. Foi um típico almoço de domingo, tardio, abundante e de
alegre convívio. Sentia-me verdadeiramente abençoada, com todos os amigos, boa
comida e um sol luminoso. Eu tinha vontade de um domingo de não fazer nada e só
aproveitar a companhia, e sem esforço consegui. Fomos tomar café ao Via Via,
lugar nevrálgico na Plaza de Armas, e depois ver filmes toda a tarde em casa do
Juan. Nessa noite já tive algumas despedidas de amigos que saíam de viagem cedo
no dia seguinte, e pouco a pouco a iminência da partida começava a pesar.
Quando não estava a pensar parecia-me apenas um domingo normal seguindo rituais
enraizados durante meses. Mas depois lembrava-me que era a última vez que
estava a viver aquele momento, pela cabeça passavam-me imagens de
acontecimentos vividos ao longo dos meses passados, dei-me conta de como o
tempo parece muito longo e que aconteceram mais coisas do que supostamente
caberiam em nove meses. Parece toda uma vida, o passado já tão longínquo, sem
dúvida uma vida antes e outra vida depois do Perú.
O meu último dia em Ayacucho,
segunda-feira vinte e dois de julho de dois mil e treze, foi passado a fazer
malas, despedir-me dos companheiros de trabalho e dos amigos. Foi incrivelmente
emotivo dizer adeus a cada uma das pessoas com quem trabalhei durante estes
nove meses, todos tinham palavras amáveis para me dizer, alguns mais pessoais e
afectuosos que outros, consoante a relação de confiança. Marcou-me
especialmente despedir-me do meu colega Jhon, com quem tinha viajado em
trabalho a Quillabamba, e da Hilda, minha coordenadora de trabalho. Dei-me conta
do quanto os meus colegas me apreciam e quanto admiram o meu trabalho, de como
me integrei nesta família ao ponto de já não me sentir estranjeira, e de como
já não se lembravam que eu era voluntária e já não pensavam que eu teria de ir
embora em breve, como se já fizesse indeterminadamente parte da equipa. Foi
quando as lágrimas recomeçaram a jorrar, e eu sentia que não podia ir embora,
que não podia deixar aqueles colegas e aquele ambiente de trabalho, que depois
da Mama Alice nunca mais poderei trabalhar num atelier de arquitectura
competitivo e cheio de pressão, com algum patrão controlador e autoritário, e
que dificilmente voltarei a acordar com tanta vontade de ir trabalhar como aqui
em Ayacucho. Estou bem arranjada para o futuro, não acham?!
Nessa manhã ainda recebi uma última visita de alguns dos meus rapazes da carpintaria metálica, que vieram até a oficina da Mama Alice para se despedirem de mim outra vez.
Nessa manhã ainda recebi uma última visita de alguns dos meus rapazes da carpintaria metálica, que vieram até a oficina da Mama Alice para se despedirem de mim outra vez.
O meu autocarro era às dez da
noite, pelo que tive tempo de acabar as malas e sentar-me em cima delas para
que fechassem, fazer uma última visita ao meu amigo tatuador Manu, passar outra
vez na oficina Mama Alice para mais uma despedida e o derradeiro olhar sobre os
lugares e as coisas, e ir jantar com o pessoal ao Wallpa Sua, um restaurante de
frango na brasa onde jantei muitas e muitas vezes, sobretudo à sexta-feira. E
mais uma vez me esquecia momentaneamente de que ia viajar, parecia uma noite
normal a jantar com os meus amigos.
Vieram bastantes amigos despedir-se
ao terminal da Cruz del Sur, tal como a Fredy e a Angi da Mama Alice, e alguns
dos rapazes da casa de acolhimento. Eu estava tranquila e despedi-me de todos
com abraços apertados e beijos afectuosos, alguns prometeram vir ter comigo a
Lima no último fim de semana em que cá estou antes do meu voo de regresso a
Portugal, e não me pesava a evidência da partida porque eu não estava em mim, não
estava a assimilar em tempo real o que estava a acontecer. Só quando entrei no
autocarro e comecei a ver os vários presentes que me tinham trazido, postais
com palavras de afecto, e a ver as luzes de Ayacucho pelas colinas abaixo, é
que me bateu em cheio na testa como uma chapada sem mão que aquilo era um
adeus, era um fim, não para sempre mas por bastante tempo, e sobretudo porque
nada se repete, os momentos da vida são únicos, e não podemos fazer mais do que
guardá-los cá dentro porque tentar repeti-los é esforço inútil. E chorei como
uma criança.
Agora
estou em Lima, no seminário dos Missionários Combonianos, e estou a ter de novo
aquela sensação de desorientação que experimentei à chegada ao Perú. Não por
desconhecer, não pelo contraste cultural, nem sequer pela enormidade do espaço,
tão somente porque ainda não consegui assimilar que já não estou em Ayacucho, o
meu espírito está confuso e o meu ânimo alterna entre o choque da partida e a
expectiva de uma nova aventura. Tenho descansado imenso, comido e dormido bem
(abençoados sejam pela hospitalidade!), passeado um pouco e visitado alguns
amigos aqui. No próximo sábado estou de partida para a última viagem no Perú,
durante dez dias, e depois volto a Lima para os derradeiros dias neste país.
Hoje ao almoço estava a ouvir um dos seminaristas conversar com a cozinheira,
ambos peruanos, e dei por mim a pensar que não era tão mau já não estar em
Ayacucho enquanto ainda estivesse no Perú, e que ainda tenho três semanas. Não
sei o que vou dizer a mim mesma, para me consolar, quando se acabar
definitivamente o tempo.