quinta-feira, 4 de julho de 2013

DIA 264 – MUDAR O MUNDO, OU APENAS UMA CASA DE CADA VEZ

                Trabalhar ao fim de semana é uma seca. Se for os dois dias, sábado e domingo, para depois começar uma nova semana sem pausas é muito pesado, a segunda-feira que por si só já costuma ser um dia difícil torna-se ainda mais cansativo. E na Mama Alice é demasiado frequente termos actividades extra ao fim de semana. Mas são sempre por um bom motivo, é sempre pelas nossas crianças. E como foi por elas que eu vim para o Perú trabalhar à borla, o cansaço desvanece-se nos meandros dos fundamentos do meu projecto de voluntariado. Às vezes já nem me lembro que sou voluntária e que estou aqui a fazer isto porque quero e sem que me paguem, de tal modo já sinto isto como o meu trabalho. Depois olho para a minha conta bancária e recordo-me imediatamente que não estou a receber um salário, e é por isso que daqui a um mês tenho de me ir embora.

                Este fim de semana descubri uma nova vertente do meu voluntariado, e apesar de não ser uma novidade para mim e já ter pensado nisso muitas vezes, foi a primeira vez que se proporcionou concretizar, por puro acaso do destino, e tornou-se uma possibilidade tão real que não consigo parar de pensar nisto.

                Cada ano a Mama Alice recebe um grupo de adolescentes holandeses através do programa Global Exploration: durante um ano eles angariam fundos na sua terra natal através de variadas actividades, para depois virem três semanas ao Perú. Essas semanas são repartidas entre férias e passeio e uma visita à nossa ONG para conhecer o trabalho, os bairros, as crianças e as suas famílias. Nos quatro dias que estes jovens ficam em Ayacucho com os professores que os acompanham, a cada um é atribuído por sorteio um dos adolescentes com quem trabalhamos, para serem um par durante toda a visita. Realizamos diferentes actividades na cidade, na sede e nos bairros, algumas mais culturais, outras mais desportivas, e outras mais emocionais, como a visita a um dos locais onde dormem as crianças de rua, e que é sempre bastante impressionante e forte para estes jovens de boas famílias holandesas.

O meu papel em todo este processo foi servir de intérprete: os holandeses não falam espanhol e os nossos miúdos, infelizmente, não falam quase nada de inglês (os meus oito meses aqui não são suficientes), então eu e outros trabalhadores andámos distribuídos pelos grupos formados para as actividades para permitir a comunicação entre todos. O fim de semana culminou numa manhã de trabalho de construção civil: além dos numerosos presentes em material e financiamento directo que os holandeses trouxeram para a Mama Alice, parte dos fundos por eles angariados durante o ano foi para gastar em obras de beneficiação em casas das famílias mais pobres das crianças e jovens dos nossos centros. Por isso, este domingo dividimo-nos em equipas de dois holandeses, dois peruanos, um professor e um trabalhor da Mama Alice e fomos a quinze casas nos bairros mais pobres de Ayacucho fazer um pouco de tudo o que fosse preciso: colocar portas em casas que não têm nenhuma, semear e plantar em hortas abandonadas por falta de dinheiro, montar camas, mesas ou um galinheiro, e, no meu caso, construir uma casa de banho. Sim, construir uma casa de banho em duas horas.

A família que calhou ao meu grupo é de uma menina de quatro anos com quem trabalho em Educação Inicial às terças-feiras. Vive num pequeno pátio com o pai, a mãe e as duas irmãs, de dez e três anos, e a sua casa é constituída por dois cubículos com paredes de adobe e cobertura em chapa metálica ondulada, em que um alberga a cozinha com um fogão feito de dois tijolos e uma grelha, e no outro está o quarto, onde dormem os cinco juntos. Num canto do pátio tinham uma sanita ao ar livre, sem qualquer protecção ou divisória, e essa era a casa de banho. Duche não havia, tomavam banho com água aquecida num grande alguidar, também no pátio. Ou seja, privacidade zero.

Mas estou a descrever esta situação com o tempo verbal no passado, porque este domingo tudo isto mudou. Com o dinheiro trazido pelos jovens holandeses e a mão-de-obra deles em conjunto com a dos trabalhadores da Mama Alice (perdoem-me a ausência de modéstia, no meu caso, mão-de-obra voluntária) em duas horas construímos uma casa de banho feita de madeira e chapa metálica ondulada, com paredes, tecto e uma porta, em redor da sanita existente no pátio, e fizémos uma ligação em tubos de plástico para que possam ter também um duche. Devo dizer que éramos quatro miúdas e um rapaz, ajudados pelo pai de família. Quando nos viu entrar, ele ficou um bocado assustado: devia estar à espera de ver chegar homens com capacidade de trabalho. Mas eu assegurei-lhe que a nossa falta de experiência seria largamente compensada pela nossa vontade de trabalhar, e que ele só tinha de nos dizer o que fazer.

E foi assim que deitámos mãos à obra. O rapaz ajudou o senhor a cavar buracos para os troncos que serviriam de estrutura, e a colocar as traves para o tecto, enquanto eu e as miúdas pregávamos pregos, montávamos a porta, colocávamos as chapas para fazer de parede e alisávamos o chão. É incrível, mas é verdade: em duas horas construímos uma casa de banho. Claro que não é uma casa de banho de tijolo, com revestimento cerâmico impermeável aplicado sobre betonilha regularizadora armada com malha sol. As paredes não têm isolamento térmico nem acústico, o duche não tem base de porcelana e não há torneira nem chuveiro. A sanita não tem ligação a esgoto nem autoclismo, e a cobertura não tem nenhuma protecção contra a humidade. Isso sim, teria demorado vários dias ou mesmo semanas a construir. Mas a partir de agora cada um dos cinco membros desta família poderá fechar a porta para fazer xixi com alguma privacidade, e terão uma caída de água para tomar um duche minimamente digno desse nome. Com água fria, claro, que não há dinheiro para electricidade. E isto quando não faltar água no bairro, o que acontece pelos menos duas a três vezes por semana.

A qualidade do trabalho também não foi topo de gama, devido à nossa ausência de experiência em armar molduras de portas e pregar pregos. Eu sei desenhar os elementos de construção e prescrever materiais adequados, mas nunca tinha posto as mãos na massa para construir. Valeu-me a recordação de tardes da minha infância em que o meu pai, jeitoso de mãos, andava a arranjar coisas em nossa casa e eu andava atrás dele a pregar e serrar bocados perdidos de madeira velha. E adorei! A sensação de pegar em materiais soltos e juntá-los para obter algo de concreto e muito útil para alguém que não tem possibilidades económicas para o fazer, é brutal!

No final, a senhora ofereceu-nos chá de camomila e o senhor estava tão emocionado que nem tinha palavras para expressar o seu agradecimento. Ainda sobrou uma chapa metálica, que ele disse que ia usar para forrar o tecto do quarto, que tem um buraco por onde chove em cima da cama.

As miúdas holandesas estavam impressionadas e radiantes, e os adolescentes peruanos estavam surpreendidos pelas suas próprias capacidades, e creio que foi muito benéfico para eles ajudarem com as próprias mãos outras pessoas do seu bairro que vivem ainda pior do que as suas próprias famílias. E eu senti que construir uma casa de banho com madeira e chapa metálica para uma família pobrérrima é muito mais útil e valioso para gastar as minhas energias e a minha juventude do que passar oito horas por dia atrás de um computador a desenhar linhas em autocad.






                E foi então que eu pensei: e se eu conseguir que me paguem para continuar a fazer isto? E se eu conseguir fazer disto o meu trabalho? *

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