Trabalhar ao fim de semana é uma
seca. Se for os dois dias, sábado e domingo, para depois começar uma nova
semana sem pausas é muito pesado, a segunda-feira que por si só já costuma ser
um dia difícil torna-se ainda mais cansativo. E na Mama Alice é demasiado
frequente termos actividades extra ao fim de semana. Mas são sempre por um bom
motivo, é sempre pelas nossas crianças. E como foi por elas que eu vim para o
Perú trabalhar à borla, o cansaço desvanece-se nos meandros dos fundamentos do
meu projecto de voluntariado. Às vezes já nem me lembro que sou voluntária e
que estou aqui a fazer isto porque quero e sem que me paguem, de tal modo já
sinto isto como o meu trabalho. Depois olho para a minha conta bancária e
recordo-me imediatamente que não estou a receber um salário, e é por isso que
daqui a um mês tenho de me ir embora.
Este fim de semana descubri uma
nova vertente do meu voluntariado, e apesar de não ser uma novidade para mim e
já ter pensado nisso muitas vezes, foi a primeira vez que se proporcionou
concretizar, por puro acaso do destino, e tornou-se uma possibilidade tão real
que não consigo parar de pensar nisto.
Cada ano a Mama Alice recebe um
grupo de adolescentes holandeses através do programa Global Exploration: durante
um ano eles angariam fundos na sua terra natal através de variadas actividades,
para depois virem três semanas ao Perú. Essas semanas são repartidas entre
férias e passeio e uma visita à nossa ONG para conhecer o trabalho, os bairros,
as crianças e as suas famílias. Nos quatro dias que estes jovens ficam em
Ayacucho com os professores que os acompanham, a cada um é atribuído por
sorteio um dos adolescentes com quem trabalhamos, para serem um par durante
toda a visita. Realizamos diferentes actividades na cidade, na sede e nos
bairros, algumas mais culturais, outras mais desportivas, e outras mais
emocionais, como a visita a um dos locais onde dormem as crianças de rua, e que
é sempre bastante impressionante e forte para estes jovens de boas famílias holandesas.
O meu papel em todo este processo foi servir de intérprete: os
holandeses não falam espanhol e os nossos miúdos, infelizmente, não falam quase
nada de inglês (os meus oito meses aqui não são suficientes), então eu e outros
trabalhadores andámos distribuídos pelos grupos formados para as actividades
para permitir a comunicação entre todos. O fim de semana culminou numa manhã de
trabalho de construção civil: além dos numerosos presentes em material e
financiamento directo que os holandeses trouxeram para a Mama Alice, parte dos
fundos por eles angariados durante o ano foi para gastar em obras de beneficiação
em casas das famílias mais pobres das crianças e jovens dos nossos centros. Por
isso, este domingo dividimo-nos em equipas de dois holandeses, dois peruanos,
um professor e um trabalhor da Mama Alice e fomos a quinze casas nos bairros
mais pobres de Ayacucho fazer um pouco de tudo o que fosse preciso: colocar
portas em casas que não têm nenhuma, semear e plantar em hortas abandonadas por
falta de dinheiro, montar camas, mesas ou um galinheiro, e, no meu caso,
construir uma casa de banho. Sim, construir uma casa de banho em duas horas.
A família que calhou ao meu grupo é de uma menina de quatro anos com
quem trabalho em Educação Inicial às terças-feiras. Vive num pequeno pátio com
o pai, a mãe e as duas irmãs, de dez e três anos, e a sua casa é constituída
por dois cubículos com paredes de adobe e cobertura em chapa metálica ondulada,
em que um alberga a cozinha com um fogão feito de dois tijolos e uma grelha, e no
outro está o quarto, onde dormem os cinco juntos. Num canto do pátio tinham uma
sanita ao ar livre, sem qualquer protecção ou divisória, e essa era a casa de
banho. Duche não havia, tomavam banho com água aquecida num grande alguidar, também
no pátio. Ou seja, privacidade zero.
Mas estou a descrever esta situação com o tempo verbal no passado, porque
este domingo tudo isto mudou. Com o dinheiro trazido pelos jovens holandeses e
a mão-de-obra deles em conjunto com a dos trabalhadores da Mama Alice
(perdoem-me a ausência de modéstia, no meu caso, mão-de-obra voluntária) em
duas horas construímos uma casa de banho feita de madeira e chapa metálica
ondulada, com paredes, tecto e uma porta, em redor da sanita existente no
pátio, e fizémos uma ligação em tubos de plástico para que possam ter também um
duche. Devo dizer que éramos quatro miúdas e um rapaz, ajudados pelo pai de
família. Quando nos viu entrar, ele ficou um bocado assustado: devia estar à
espera de ver chegar homens com capacidade de trabalho. Mas eu assegurei-lhe
que a nossa falta de experiência seria largamente compensada pela nossa vontade
de trabalhar, e que ele só tinha de nos dizer o que fazer.
E foi assim que deitámos mãos à obra. O rapaz ajudou o senhor a cavar
buracos para os troncos que serviriam de estrutura, e a colocar as traves para
o tecto, enquanto eu e as miúdas pregávamos pregos, montávamos a porta,
colocávamos as chapas para fazer de parede e alisávamos o chão. É incrível, mas
é verdade: em duas horas construímos uma casa de banho. Claro que não é uma
casa de banho de tijolo, com revestimento cerâmico impermeável aplicado sobre
betonilha regularizadora armada com malha sol. As paredes não têm isolamento
térmico nem acústico, o duche não tem base de porcelana e não há torneira nem
chuveiro. A sanita não tem ligação a esgoto nem autoclismo, e a cobertura não
tem nenhuma protecção contra a humidade. Isso sim, teria demorado vários dias
ou mesmo semanas a construir. Mas a partir de agora cada um dos cinco membros desta
família poderá fechar a porta para fazer xixi com alguma privacidade, e terão
uma caída de água para tomar um duche minimamente digno desse nome. Com água
fria, claro, que não há dinheiro para electricidade. E isto quando não faltar
água no bairro, o que acontece pelos menos duas a três vezes por semana.
A qualidade do trabalho também não foi topo de gama, devido à nossa
ausência de experiência em armar molduras de portas e pregar pregos. Eu sei
desenhar os elementos de construção e prescrever materiais adequados, mas nunca
tinha posto as mãos na massa para construir. Valeu-me a recordação de tardes da
minha infância em que o meu pai, jeitoso de mãos, andava a arranjar coisas em
nossa casa e eu andava atrás dele a pregar e serrar bocados perdidos de madeira
velha. E adorei! A sensação de pegar em materiais soltos e juntá-los para obter
algo de concreto e muito útil para alguém que não tem possibilidades económicas
para o fazer, é brutal!
No final, a senhora ofereceu-nos chá de camomila e o senhor estava tão emocionado
que nem tinha palavras para expressar o seu agradecimento. Ainda sobrou uma
chapa metálica, que ele disse que ia usar para forrar o tecto do quarto, que
tem um buraco por onde chove em cima da cama.
As miúdas holandesas estavam impressionadas e radiantes, e os adolescentes
peruanos estavam surpreendidos pelas suas próprias capacidades, e creio que foi
muito benéfico para eles ajudarem com as próprias mãos outras pessoas do seu
bairro que vivem ainda pior do que as suas próprias famílias. E eu senti que
construir uma casa de banho com madeira e chapa metálica para uma família
pobrérrima é muito mais útil e valioso para gastar as minhas energias e a minha
juventude do que passar oito horas por dia atrás de um computador a desenhar
linhas em autocad.
E foi então que eu pensei: e se
eu conseguir que me paguem para continuar a fazer isto? E se eu conseguir fazer
disto o meu trabalho? *
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