quinta-feira, 25 de julho de 2013

DIA 279 – “NO TE VAYAS, PROFESORA” – A SEMANA DAS DESPEDIDAS

              A vida é cíclica. Há momento e fases que se repetem muito tempo depois e provocam uma sensação de dejá-vu. Ou melhor, como diz uma querida amiga minha, a vida é espiralada. Porque quando essas fases ou momentos se repetem nós já não somos exactamente os mesmos, nem estamos exactamente na mesma situação, pela passagem do tempo e a sucessão inevitável dos acontecimentos. Estamos no mesmo lugar mas uns metros mais acima no caminho da nossa evolução pessoal. É o que eu estou a sentir agora.

                Saí de Ayacucho na segunda-feira dia vinte e dois de julho de dois mil e treze às dez da noite no autocarro da Cruz del Sur para Lima, depois de nove meses e nove dias nesta cidade que se tornou a minha segunda casa. Agora estou de volta ao seminário dos Missionários Combonianos aqui na capital, onde passei os meus primeiros dias no Perú. É curioso regressar aqui tantos meses depois e recordar o que senti inicialmente neste quarto, nesta casa, com estas pessoas. Foram os meus primeiros amigos aqui, e lembro-me como estava assustada, nervosa e surpreendida com tudo à minha chegada, e de como a hospitalidade e afecto destes seminaristas foi essencial para me sentir segura e confiante para me atirar de cabeça à aventura que me esperava. Voltar aqui nove meses depois com tanto Perú na bagagem, nas últimas semanas de permanência neste país e já nada assustada, nervosa nem surpreendida, tão simplesmente integrada e à-vontade, reforça-me a ideia de que de facto a vida não é cíclica, é espiralada. Porque estou no mesmo lugar, a terminar um ciclo, outra vez em Lima no final como estive ao princípio, e experimento a contradição do dejá-vu com a diferença das sensações. Eu já não sou definitivamente a mesma que era quando cheguei, nem Lima nem o Perú serão nunca mais estranhos e assustadores para mim.

                A última semana em Ayacucho foi a mais intensa e cansativa do meu tempo no Perú. Trabalhei mais nesta semana do que em todas as outras, e experimentei stress pela primeira vez. Tinha de deixar uma série de trabalhos terminados, fazer relatórios e despedir-me das crianças nos bairros. Acordei cedo e deitei-me tarde, tive almoços e jantares fora quase todos os dias e passei a semana com a clara sensação de que não me ia chegar o tempo para fazer tudo o que me faltava.

                Já há algum tempo que eu andava a preparar os miúdos para a iminência da minha partida e a lidar com refunfos e lamentos momentaneos quando fazia referência a isso, antecipando o drama da despedida com a frase “No te vayas, profesora, no te vayas!” De modo que quando chegou a última semana, já todos sabiam que não haveria “a próxima aula”. No entanto, a minha preparação não foi nem de longe suficiente para o drama efectivo da despedida. Os primeiros dias foram mais tranquilos porque os meninos do jardim de infância, com quem trabalhava às segundas e terças feiras, não têm muita consciência da ausência nem total noção da separação, o que tornou a despedida muito superficial e abstracta, e lidei bastante bem com a coisa. Na quarta-feira bateu-me em cheio no peito que era a última vez que estava a olhar para os meus alunos do bairro de Keiko Sofia, e confesso que fui indesculpavelmente covarde porque não tive coragem para me despedir convenientemente. Só disse adeus aos que vinham perguntar quando era a próxima aula, os que se foram embora sem dizer nada não chegaram a recordar-se de que eu já não voltava. Senti-me mal depois, por não ter ido falar pessoalmente com cada um deles para me despedir. Não fui capaz. Sabia o histerismo que ia provocar e naquele instante não me senti capaz de lidar com isso. E quando apanhei pela última vez o autocarro de regresso ao centro da cidade, vendo as ruas de terra batida e casas de tijolo empoeirado, sabia que não tinha estado à altura da situação, e que nas próximas semanas aqueles miúdos vão perguntar por mim aos outros professores e sentir-se enganados por eu me ter ido embora sem me despedir. Bolas :(

               Mas no bairro de Once de Junio não me deixaram fugir. Estive toda a tarde de quinta-feira a ajudar crianças e adolescentes a fazer os trabalhos de casa de Inglês, foi uma das tardes mais cansativas e mais divertidas que passei naquele bairro. Estavam lá todos os meus meninos queridos e os adolescentes que conheço melhor, e senti-me extremamente realizada por conseguir ensinar-lhes alguma coisa e ajudá-los efectivamente a aprender. Os refunfos e lamentos foram-se manifestando ao longo da tarde, de vez em quando alguém se lembrava de que era a minha última vez ali e vinha agarrar-se a mim a choramingar “No te vayas, profesora, no nos dejes, quedate com nosotros!” (e o meu coração mirrando, mirrando, até implodir numa bolinha de saudade). Uma das meninas disse-me que tinha comprado uma pintaínha para me oferecer, pediu-me para a levar para Portugal e lhe pôr o nome dela para nunca me esquecer. Depois da surpresa e da ternura tive de lhe explicar que não podia levar um frango na minha mala no avião, não só porque era proibido mas também porque obviamente morreria. Não foi fácil convencê-la, mas por fim lá aceitou em ficar ela com a bicha e lhe pôr o meu nome, para nunca se esquecer de mim.

            A certa altura saí para ir à casa de banho e de caminho fiquei à conversa com uma das minhas colegas da Mama Alice. Quando voltei à sala da biblioteca tinha uma multidão de crianças a bater palmas para mim. Foi um choque! Eu não estava nada à espera daquilo! Ver ali todos os meus alunos e os outros meninos que não estavam nas minhas aulas mas que já conheço tão bem, todos juntos a gritar por mim, fez-me cair na realidade: aquilo era uma surpresa de despedida, e dali já não saía sem abraços, beijos e lágrimas. Então o Ferreol, o professor responsável pelo centro daquele bairro, disse algumas palavras que eu já nem recordo muito bem porque já estava a chorar perdidamente, mas retive que as crianças iam ter muitas saudades minhas e tinham andado a semana toda a ensaiar (bem escondidos!) a última canção que eu lhes tinha ensinado há uns meses, uma canção em quechua, para me cantar como presente de despedida. E depois cantaram. E depois voltaram a cantar porque eu queria fazer um video para não perder nunca mais aquele momento. Foi indescritível, ainda agora me arrepio ao recordar. E depois das palmas vieram os abraços, os beijos e as lágrimas. Pediram-me infinitamente que não me fosse embora, perguntaram porque tinha de ir, e quando lhes recordei que sou voluntária e não posso viver para sempre sem um salário algumas das meninas começaram a dizer que me pagavam um sol por dia para eu poder continuar a trabalhar ali! O que é que eu posso contrapor a este argumento?! Despedir-me dos amigos e dos companheiros de trabalho foi muito difícil, mas o pior foi sem dúvida das crianças, porque não entendem as situações nem têm noção da inevitabilidade da vida. Para os meus alunos, não era obrigatório nem lógico nem inevitável que eu tivesse de me ir embora, e na cabeça deles pagar-me um sol por dia resolvia a situação. E eu estive quase quase para aceitar!! Vim embora do bairro quase às oito da noite acompanhada pelo meu aluno David até parte do caminho, enquanto atrás ficavam um grupo de meninas a olhar para mim de lágrimas nos olhos até eu virar a esquina. Nunca me esquecerei dessa imagem nem de como me doía o coração.








                No dia seguinte esperava-me outra tortura auto-infligida, e confesso que nesta fase da semana eu já estava a desenvolver uma recusa insconsciente às despedidas e já tinha vontade de fugir sem dizer adeus a ninguém. Foi a minha última aula de inglês com os rapazes do curso de serralharia do turno da manhã e do turno da tarde. Nos últimos meses estes adolescentes tornaram-se as “meninas dos meus olhos” e foi provavelmente o trabalho mais proveitoso de todo o meu voluntariado na Mama Alice. Desenvolvemos uma cumplicidade tal que estas amostras de homens rebeldes e durões se tornaram do mais dócil e acessível que experimentei aqui em Ayacucho. De todo o afecto que recebi estes meses, o deles foi o que mais me encheu o ego. E já queria adoptá-los a todos e levá-los comigo para Portugal. Ayacucho fez-me mãe do coração não só de crianças, mas também de adolescentes, vejam lá vocês!                                                                                                   

         Nesta última aula fizémos um video deles a cantar “Hey Jude” dos Beattles, que andávamos a praticar há duas semanas para ficar de recordação destes meses de aulas. Foi uma espécie de “exame final”, em que o objectivo era traduzir o texto, entender o significado, identificar funções gramaticais (especificamente pronomes, verbos e adjectivos) e treinar a pronuncia. No final o resultado não estava digno de um coro profissional, mas o esforzo e o esmero que eles puseram na voz e nas palavras (estamos a falar de rapazes de rua, alguns mal sabem falar espanhol!) deram um resultado brilhante. Eu não chorei, pelos menos dos olhos não chorei. Mas o coração estava afogado de orgulho. E para a despedida, bolo e refrigerante, beijos abraços e saudades, e uma pulseira feita por um deles e um porta-chaves como presentes para mim. Não tem preço ouvir um cavalão de dezassete anos, que já andou a roubar na rua e foi apanhado, dizer com olhos ternos: “Te vamos a estrañar un montón profesora, te queremos mucho.” Oh páááá!!





Turno da manhã

Turno da tarde

                Nessa noite convidei a Inge e os rapazes da casa de acolhimento da Mama Alice para jantar num restaurante de frango na brasa, algo tão peruano como Machu Pichu. Aqui no blog nunca cheguei a falar muito destes miúdos, ou pelo menos a referência que fiz não espelha de modo algum a relação que criei com eles nos últimos quatro meses e o quão especiais eles são para mim. Estamos a falar de rapazes que viveram na rua durante anos, que vêm de famílias desfeitas sem qualquer estabilidade nas relações nem nos afectos,  e que em momentos diferentes das suas vidas viveram na nossa casa de acolhimento. Alguns deles já não estão lá mas continuam ligados à Mama Alice e às actividades que realizamos, e foi assim que eu tomei contacto com eles e fui ganhando conhecimento, apesar de não trabalhar directamente na casa nem com eles. São miúdos adoráveis entre os quinze e os vinte anos, com variados problemas de irresponsabilidade, transgressão de regras, abuso de alcoól e consumo de drogas, mas doces e carinhosos como eu não poderia imaginar, são os “meninos mimados” da Fredy, como lhes chamamos. Eles procuram muitas vezes os trabalhadores mais jovens da Mama Alice para conversar, falar sobre a vida e pedir conselhos, e os voluntários gringos são um alvo muito atractivo. Aproveitando esse facto acabei por desenvolver uma relação de confiança diferente com cada um deles, mas a todos se abria um sorriso no rosto quando me encontravam na rua ou na oficina, e despedir-me deles e pensar que não os vou voltar a ver tão cedo partiu-me o coração. Assim que quis despedir-me convenientemente, e fui jantar com a Inge e seis deles (tinha convidado oito mas não vieram todos). Foi muito bom! Vê-los felizes a comer com gosto e na conversa uns com os outros sob o olhar carinhoso da Inge e a minha baba total tornou aquela noite num dos momentos mais especiais da minha semana das despedidas. E confirmei o que já sentia há vários meses: com o afecto das crianças e dos adolescentes nunca me sentirei, nem estarei de facto, sozinha. Nunca.

                Depois do jantar fomos a casa do Otchoa, o rapaz francês que trabalha na Cruz Vermelha e tem a melhor casa de Ayacucho, com o grupo de amigos mais íntimos. Nos primeiros meses da minha chegada cá ganhámos a tradição de nos reunirmos na casa dele às sextas-feiras, que sempre foram noite tranquilas em que o pessoal está cansado e só quer beber um copo em convívio e ir cedo para casa. Mas depois com o passar dos meses perdemos esse costume e já há muito, muito tempo que eu não ia a casa dele. Por isso pedi-lhe se podíamos repetir o evento pela última vez e fazer uma festa de “pré-despedida”, já que a grande festa com todos os amigos e conhecidos seria no dia seguinte na minha casa. É tão curiosa a sensação de familiaridade total com este pequeno grupo de pessoas que eu já conheço tão e com quem me sinto tão eu mesma, sem complexos nem vergonhas. Quando penso que só os conheço há nove meses e que antes deles havia toda uma vida em Lisboa, e um grupo de pessoas que também eram a minha família e com quem experimentava a mesma sensação, parece-me que tudo isso passou há séculos. E a ideia de que aquela noite de sexta-feira com cervejas e música estava a ser a última da minha vida com eles (mesmo que eu volte a Ayacucho no futuro, já nada será igual) revestia-se de irrealidade e eu não conseguia assimilar. Adoro-os a todos, cada um com a sua personalidade e as suas manias, e adoro sentir-me tão bem e tão feliz com eles. Este grupo de pessoas são, sem dúvida, um dos factores primordiais para que Ayacucho seja casa para mim.   Obrigada à Tania, à Inge, à Stefanni, ao Otchoa, ao Juan, ao Akira, à Sol, à Nati, ao Willie e à Neus.
                A noitada não foi longa porque o dia seguinte seria muito ocupado pelo que eu tinha de acordar cedo, e já estava em stress quando fui dormir. Era o sábado da minha festa de despedida, mas até chegar à noite eu tinha demasiadas coisas para fazer: acabar um documento sobre o novo projecto para deixar à Fredy, limpar a casa, ir ao mercado, cozinhar para a festa, decorar a sala e terminar todos os preparativos. Estava um dia solarengo e quente apesar de supostamente ser inverno (na sierra do Perú as estações são muito estranhas) e as horas passaram rapidamente. Pouco antes das oito chegou uma das minhas colegas de trabalho com a filha bebé, e eu tive de a deixar sozinha em casa porque ainda me faltava ir à oficina da Mama Alice buscar umas cadeiras de plástico emprestadas. Depois chegaram mais três colegas, e foram as únicas na festa durante duas horas… até que entretanto chegou a Inge, e mais tarde por volta das onze começou a chegar o pessoal todo. Eu não estava preocupada porque já sei como são as coisas no Perú: convidas para as oito, começam a chegar às dez. Pelo que a festa foi passando por diversas fases, inicialmente colegas de trabalho com filhos, e depois os amigos. Acabámos a noite a cumprir pela última vez a tradição de sábado: dançar no Maxx’oh. E foi tão fixe :)

                No domingo acordei cheia de energia apesar das poucas horas de sono e consegui arrumar e limpar os destroços de guerra antes de ir almoçar com o pessoal todo. Fomos a um restaurante pouco conhecido no meio de um bairro, chamado Pátio Escondido por razões óbvias, que tem mesas no jardim e a melhor carne de frango e porco de Ayacucho. Quando cá cheguei em outubro de dois mil e doze vim almoçar aqui no primeiro domingo, com a Celsa, a Tania, o Juan e o Juan Manuel, um rapaz mexicano que entretanto foi embora. Voltei cá algumas vezes durante estes meses, mas quis vir especificamente no último domingo porque tinha um significado afectivo. Foi um típico almoço de domingo, tardio, abundante e de alegre convívio. Sentia-me verdadeiramente abençoada, com todos os amigos, boa comida e um sol luminoso. Eu tinha vontade de um domingo de não fazer nada e só aproveitar a companhia, e sem esforço consegui. Fomos tomar café ao Via Via, lugar nevrálgico na Plaza de Armas, e depois ver filmes toda a tarde em casa do Juan. Nessa noite já tive algumas despedidas de amigos que saíam de viagem cedo no dia seguinte, e pouco a pouco a iminência da partida começava a pesar. Quando não estava a pensar parecia-me apenas um domingo normal seguindo rituais enraizados durante meses. Mas depois lembrava-me que era a última vez que estava a viver aquele momento, pela cabeça passavam-me imagens de acontecimentos vividos ao longo dos meses passados, dei-me conta de como o tempo parece muito longo e que aconteceram mais coisas do que supostamente caberiam em nove meses. Parece toda uma vida, o passado já tão longínquo, sem dúvida uma vida antes e outra vida depois do Perú.

                O meu último dia em Ayacucho, segunda-feira vinte e dois de julho de dois mil e treze, foi passado a fazer malas, despedir-me dos companheiros de trabalho e dos amigos. Foi incrivelmente emotivo dizer adeus a cada uma das pessoas com quem trabalhei durante estes nove meses, todos tinham palavras amáveis para me dizer, alguns mais pessoais e afectuosos que outros, consoante a relação de confiança. Marcou-me especialmente despedir-me do meu colega Jhon, com quem tinha viajado em trabalho a Quillabamba, e da Hilda, minha coordenadora de trabalho. Dei-me conta do quanto os meus colegas me apreciam e quanto admiram o meu trabalho, de como me integrei nesta família ao ponto de já não me sentir estranjeira, e de como já não se lembravam que eu era voluntária e já não pensavam que eu teria de ir embora em breve, como se já fizesse indeterminadamente parte da equipa. Foi quando as lágrimas recomeçaram a jorrar, e eu sentia que não podia ir embora, que não podia deixar aqueles colegas e aquele ambiente de trabalho, que depois da Mama Alice nunca mais poderei trabalhar num atelier de arquitectura competitivo e cheio de pressão, com algum patrão controlador e autoritário, e que dificilmente voltarei a acordar com tanta vontade de ir trabalhar como aqui em Ayacucho. Estou bem arranjada para o futuro, não acham?!                   
           Nessa manhã ainda recebi uma última visita de alguns dos meus rapazes da carpintaria metálica, que vieram até a oficina da Mama Alice para se despedirem de mim outra vez.

            O meu autocarro era às dez da noite, pelo que tive tempo de acabar as malas e sentar-me em cima delas para que fechassem, fazer uma última visita ao meu amigo tatuador Manu, passar outra vez na oficina Mama Alice para mais uma despedida e o derradeiro olhar sobre os lugares e as coisas, e ir jantar com o pessoal ao Wallpa Sua, um restaurante de frango na brasa onde jantei muitas e muitas vezes, sobretudo à sexta-feira. E mais uma vez me esquecia momentaneamente de que ia viajar, parecia uma noite normal a jantar com os meus amigos.
           Vieram bastantes amigos despedir-se ao terminal da Cruz del Sur, tal como a Fredy e a Angi da Mama Alice, e alguns dos rapazes da casa de acolhimento. Eu estava tranquila e despedi-me de todos com abraços apertados e beijos afectuosos, alguns prometeram vir ter comigo a Lima no último fim de semana em que cá estou antes do meu voo de regresso a Portugal, e não me pesava a evidência da partida porque eu não estava em mim, não estava a assimilar em tempo real o que estava a acontecer. Só quando entrei no autocarro e comecei a ver os vários presentes que me tinham trazido, postais com palavras de afecto, e a ver as luzes de Ayacucho pelas colinas abaixo, é que me bateu em cheio na testa como uma chapada sem mão que aquilo era um adeus, era um fim, não para sempre mas por bastante tempo, e sobretudo porque nada se repete, os momentos da vida são únicos, e não podemos fazer mais do que guardá-los cá dentro porque tentar repeti-los é esforço inútil. E chorei como uma criança.


        Agora estou em Lima, no seminário dos Missionários Combonianos, e estou a ter de novo aquela sensação de desorientação que experimentei à chegada ao Perú. Não por desconhecer, não pelo contraste cultural, nem sequer pela enormidade do espaço, tão somente porque ainda não consegui assimilar que já não estou em Ayacucho, o meu espírito está confuso e o meu ânimo alterna entre o choque da partida e a expectiva de uma nova aventura. Tenho descansado imenso, comido e dormido bem (abençoados sejam pela hospitalidade!), passeado um pouco e visitado alguns amigos aqui. No próximo sábado estou de partida para a última viagem no Perú, durante dez dias, e depois volto a Lima para os derradeiros dias neste país. Hoje ao almoço estava a ouvir um dos seminaristas conversar com a cozinheira, ambos peruanos, e dei por mim a pensar que não era tão mau já não estar em Ayacucho enquanto ainda estivesse no Perú, e que ainda tenho três semanas. Não sei o que vou dizer a mim mesma, para me consolar, quando se acabar definitivamente o tempo.

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