quinta-feira, 11 de julho de 2013

DIA 270 – “WELCOME TO PERÚ” – NOVE MESES DE PERÚ (UM MÊS PARA LISBOA)

Esta foi uma das nossas frases preferidas e mais frequentes na casa dos voluntários da Mama Alice, e servia como resposta ou comentário para qualquer constatação ou lamento que um de nós tivesse sobre Ayacucho e sobre os peruanos. Há certas situações que acontecem neste país que não acontecem em mais lado nenhum, há coisas boas a que nos afeiçoamos e coisas más que nos incomodam que são típicas daqui, e quando acontecem só podemos sorrir ou respirar fundo e dizer uns aos outros: “Pois é, welcome to Perú”.

Já há bastante tempo que tenho vontade de partilhar convosco algumas destas tipicidades peruanas que marcam o meu dia-a-dia. Algumas tornaram-se tão costumeiras que já nem reparo, e se ao princípio as estranhei agora entranhei e sei que vou ter um choque quando voltar para Lisboa. Outras continuam a chamar-me a atenção diariamente pela positiva ou pela negativa, rompendo a minha familiaridade com esta cultura e recordando-me que nunca deixarei de ser estranjeira, pois a certas coisas não consegui de todo habituar-me nestes nove meses em que já cá estou. É que ser peruano, e sobretudo ayacuchano, é ter uma série de hábitos, costumes e manias muito próprias que me fazem rir ou chorar consoante as situações, mas todas me deixarão nostalgia e inspirarão ternura quando me for embora e o tempo continuar a passar. 

Esta é uma visão pessoal, parcial  e naturalmente incompleta. Pelo que eu já conheço, ser peruano é…

… as pessoas tratarem-se entre si, sejam amigas ou desconhecidas, por “mama”, “mami” ou “mamasita” para as mulheres, e “papa”, “papi” ou “papasito” para os homens. Isto aplica-se a qualquer contexto e idade. Pode ser uma mãe a chamar “papasito” ao seu filho bebé ou um senhor idoso a chamar “mami” a uma empregada de loja. Toda a gente se trata assim, e ao princípio fazia-me alguma confusão que me dissessem “mãe” a mim, ou chamar “paizinho” e “mãezinha” a pessoas que não conheço de lado nenhum. Depois habituei-me e ganhei-lhe gosto: cria uma atitude de familiaridade que pode não ser real mas que inconscientemente transmite uma sensação de confiança e à-vontade. É um  hábito que vou ter muita pena de perder. 

               Ser peruano é… ter uma relação muito especial com a comida. No Perú a comida de rua é imagem de marca, em qualquer lugar da cidade, do campo ou de uma estrada perdida no meio das montanhas é possível encontrar uma “mamita” a vender água, refrigerantes, batatas fritas, bolachas, fruta, ou um prato de comida que pode ser muito simples mas não nos deixa morrer de fome em lugar algum. Os peruanos têm hábitos alimentares muito estranhos, como chamar “pequeno-almoço” a pratos consistentes de peixe frito ou carne com arroz e batata, ou canja de galinha, e comê-los às nove da manhã. Acompanham quase tudo com arroz branco e batata frita, às vezes chegando ao cúmulo de juntar também esparguete à mistura. Nos restaurantes pequenos e modestos, e nos mercados, é possível comer um menú completo de sopa, prato e bebida (e em alguns sítios até sobremesa!) por valores irrisórios de quatro e cinco soles (um euro e vinte, um euro e meio). 

            Quando queremos comprar comida para levar é possível que nos entreguem a refeição numa caixinha de esferovite, mas o mais provável é que a ponham num saco de plástico. No Perú tudo se transporta em sacos de plástico, até sumo de fruta, com uma palhinha! Aqui bebe-se mais refrigerantes do que água, sobretudo coca-cola e inka-cola, e como a água da torneira tem de ser fervida é comum fazer-se refresco de frutas para disfarçar o sabor. Só que no Perú “refresco” não significa que esteja “fresco”…pode ter sido acabado de fazer e ser servido ainda quente!
             O pão típico de Ayacucho chama-se chapla e parece uma bolinha de mistura, mas não é. Não tem miolo, é só côdea, ainda me lembro da surpresa divertida da primeira vez que comi e vi que não tem nada por dentro. Compra-se cinco chaplas por um sol (trinta cêntimos de euro) e é tão normal comprar sempre um sol de chaplas que se quiser só duas ou três perguntam-me de novo quantas quero e ficam a olhar para mim como se fosse um ser estranho…como se fosse gringa, portanto. 

             Ser peruano é… ter manias de linguagem muito peculiares. Como dizer “pues” no final de cada frase para confirmação de ideias, por exemplo “Te enseñaré a bailar, pues!” (“Vou ensinar-te a dançar, pois!”). Em Ayacucho esta palavra derivou na simplificação “pe” que só se utiliza aqui, e sem dar-me conta entranhei esta expressão na minha linguagem, e quando falo com peruanos de outros lugares gozam comigo dizendo que vê-se logo que aprendi a falar espanhol na sierra. É que já vivo há nove meses aqui, pe! E quando se quer responder “Está bem”, o que os espanhóis de Espanha diriam “Vale” nós dizemos “Ya, pe” ou “Si, pe”. Os peruanos são muito exagerados nas situações e nas palavras (assim parecidos aos italianos) e tudo na vida é muito bom, ou muito mau, ou muito grande, ou muito pequeno, ou muito impressionante. E para transmitir essa percepção acrescentam “azo” a qualquer palavra, por exemplo “Fue un viajezazo” (“Foi uma viagem brutal”) ou “Estoy cansadazo” (“Estou cansadíssimo). Ou também “Tengo que despertarme tempranazo!” (“Tenho de acordar super cedo”). O auge desta palavra é a expressão “Azo madre!” que significa algo do género “Cum catano!” e serve de resposta exclamativa a qualquer coisa que nos estejam a contar e à qual queramos reagir com intensidade. O contrário acontece com o diminutivo “ito” ou “ita” para qualquer palavra: “Donde está tu chompita?” (“Onde está a tua camisolinha?”) ou “Quieres una gaseosita?” (“Queres um refrigerantezinho?”). Ou até nos nomes: Silvita, Hildita, Jhonsito, Juansito, Jorgesito, Sarita, todos são tratados como crianças independentemente da idade que tenham.                                                                                  
             Finalmente, a minha preferida: em espanhol “agora” diz-se “ahora”, mas no Perú dizem “ahorita”. Só que aqui isto tanto pode significar “agora mesmo” ou “daqui a duas horas”, porque a noção de rapidez peruana é muito diferente da europeia. Por isso, quando eu preciso de alguma coisa e peço a alguém, que me responde “ahorita te lo hago” (“vou fazê-lo agorinha”) eu já sei que mais vale ter calma e não me impancientar porque o mais provável é ser daqui a duas horas e não agora mesmo. Como quando faltou a luz pela primeira vez na nossa casa porque rebentou um fusível, e eu liguei a um trabalhador da Mama Alice que é o “faz-tudo” da associação, e ele me disse “Ahorita voy”, e veio…várias horas depois. Se pelo contrário em vez de “ahorita” dizem “más rato” (“daqui a um bocado”), bom, isso de certeza que vai ser ao final do dia ou na manhã seguinte.

          Ser peruano é… cumprimentar só com um beijinho. O que em Portugal é ser snob como as tias de Cascais, aqui é o cumprimento do povo. Nos primeiros tempos fiquei várias vezes apeada com a cara espetada para o segundo beijinho até aprender. Agora já é tão normal que quando voltar para Lisboa vou deixar-vos apeados a vocês até me voltar a habituar. Aqui toda a gente se cumprimenta em qualquer situação, e cumprimenta-se toda a gente, não há “olás” para todos, há que dar um beijinho a cada um. Isto torna-se quase ridículo em situações de grupo, como quando chegamos a uma festa ou a uma reunião, e há que dar a voltinha para que toda a gente receba o seu beijinho. Quando há confiança e familiaridade, o beijo unilateral transforma-se num abraço. Os peruanos são muito afectuosos, sobretudo os ayacuchanos, e para mim já é perfeitamente natural abraçar os meus colegas de trabalho. E se os encontro de manhã e depois à tarde, há que cumprimentar outra vez. Os peruanos querem é beijinhos!

         Ser peruano é… ser viciado em música e filmes. É super natural andar na rua com o telemóvel a tocar em alta voz, ou ter um leitor de música com altifalante. Em qualquer lugar há música, nos restaurantes, nas lojas, nos combis, nos carrinhos de venda ambulante, nos escritórios, no banco. Os peruanos não conseguem trabalhar em silêncio. Até o camião do lixo tem música, para avisar os moradores que está na hora de pôr os sacos à porta, o que costuma acontecer de manhãzinha, inclusive ao sábado… Infelizmente, isto não significa que tenham bom gosto musical: em Ayacucho só se ouve huayno e saia (música folclore típica), salsa, cumbia e reaggaton. Nestes últimos meses, depois de passar a fase inicial de fascinação, o silêncio tornou-se de ouro para mim, e descubrir um bar onde passam rock ou conhecer alguém que goste de indie pop é um acontecimento! O cúmulo acontece na discoteca: quase só se dança huayno, saia, salsa, cumbia e reaggaton. De vez em quando lá passa algum hit da dance music comercial que esteja na moda (e que já passou de moda em Portugal no ano passado). Seria como ir ao Lux dançar o vira do minho ou o bailinho da madeira! 
       Quanto aos filmes, a América Latina será de certeza uma das capitais da pirataria informática. Existem várias lojas pejadas de dvd’s copiados até ao tecto, onde se pode encontrar qualquer filme, mais antigo ou recém estreado no cinema, pela incrível quantia de… três soles (noventa cêntimos de euro). Outra coisa em que os peruanos também são viciados é na internet. Em qualquer povoado minúsculo e isolado existe pelo menos um internet point (em Ayacucho são como cogumelos na floresta), mesmo que a ligação seja tão lenta de fazer arrancar os cabelos de nervos. E toda a gente tem perfil de facebook, desde o senhor velhote a quem compro pão todos os dias, aos meus alunos dos bairros que não têm electricidade em casa e muito menos um computador, mas têm um sol para pagar uma hora de internet no cibercafé da esquina. 

       Ser peruano é… ser desportista. Todos jogam futebol e sobretudo voley, que é o desporto nacional. E jogam muito bem! Existem vários campos de desporto espalhados pela cidade e é muito comum vê-los a jogar no meio do bairro, em família ou entre amigos, ao domingo à tarde. Este costume cultural está tão enraizado que até os meus alunos de jardim de infância jogam voley entre eles, com as suas limitações, imitando o que vêm fazer aos adultos. E na Mama Alice juntamo-nos cada sábado à tarde para jogar entre colegas de trabalho (eu eu quase nunca fui porque não partilho de tão acérrimo gosto pelo desporto).
No Perú os pesos carregam-se às costas em mantas coloridas de tecido tradicional. Pode ser uma mãe a levar o seu bebé, uma senhora que vai vender fruta ao mercado ou um homem a carregar uma televisão. Quase ninguém tem carro próprio e andar de taxi é incrivelmente barato, sobretudo se for um “moto-táxi”, iguais aos “tuc-tuc” tailandeses mas com autorádio e chassis quitados como um carro “tuning”. Não existe taxímetro, obviamente, o preço da corrida é acordado antes de entrar e decentemente regateado, porque aqui ser gringo significa pagar pelo menos mais cinquenta cêntimos de sol do que um peruano, para qualquer coisa que seja. Não existem preços fixos para quase nada, eles olham para a minha cara e decidem até que ponto podem esticar a corda, não sabem que eu já cá vivo há nove meses e sei perfeitamente o que devo pagar.

      Ser peruano é… nunca cumprir horários nem prazos. Como já referi anteriormente, a noção de pontualidade peruana é muito diferente da nossa. Quando eu combino um encontro para certa hora posso tranquilamente chegar dez minutos depois e sei que ainda vou ter de esperar. Quando se convida para uma festa é melhor marcar para duas horas antes do momento em que queremos que os convidados comecem a chegar, ou teremos uma festa vazia até à meia-noite se convidámos para a dez (como já aconteceu!). O pior é que esta característica também se aplica ao trabalho: quando há uma data limite para entregar documentos, ou um projecto, ou um relatório, já se assume naturalmente que poderá ser entregue uma semana depois. E os peruanos arranjam sempre uma desculpa para chegarem atrasados ou não terem cumprido com uma obrigação: têm uma creatividade impressionante! E não têm vergonha.

          O Perú é um país gigante e todas as distâncias são enormes quando comparadas com Portugal. Aqui, ir de Lisboa ao Porto corresponde a atravessar Lima de uma ponta à outra, e há quem faça esse trajecto diariamente para ir trabalhar. Uma viagem de quatro horas é considerada curta, e Ayacucho está perto de Lima, porque “só” se demora uma noite para fazer a viagem. Quase não se viaja de dia, a maioria das companhias de transporte apenas têm ligações nocturnas entre as principais cidades. E aldeiazinhas perdidas nas montanhas a cinco horas da capital de província pertencem todas à mesma região. Por isso é comum dizer-se “eu vivo em Ayacucho” mesmo que viva na aldeia de San Miguel, a três horas para norte. E ficam tão surpreendidos ao saber que de Lisboa a Paris são dezassete horas de autocarro e que nenhum europeu com um mínimo de possibilidade económica considera sequer a hipótese de fazer essa viagem (de Lima a Cuzco são vinte horas, por exemplo, e já não me parece nada do outro mundo).

          Entre estranjeiros dizemos em tom de gozo que a prova incontornável de se ser peruano é falar ao telemóvel como eles falam, como se fosse um walkie-talkie: encostado ao ouvido para ouvir, encostado à frente da boca para falar, encostado outra vez ao ouvido para ouvir de novo, e assim sucessivamente até acabar o telefonema. E como nos perdemos de riso na noite de sábado da Semana Santa, quando a Inge recebeu um telefonema e começou a falar assim para se fazer ouvir entre o burburinho da gente que enchia a praça. Prova superada, deviam dar-lhe a dupla nacionalidade. Eu não cheguei a tanto, pelo menos por enquanto.

           Eu sei que a minha visão do Perú é muito provinciana. Se eu tivesse estado este tempo em Lima a minha experiência teria sido bastante diferente, influenciada pelo ritmo de vida agitado e cosmopolita da metrópole. Também sei que o meu critério de comparação seria menos contrastante se eu viesse de uma pequena cidade do interior de Portugal em vez de ter vivido em Lisboa. Em todo o caso, este foi o contexto que eu escolhi, uma cidade perdida nos Andes encaixava muito mais na minha ideia de “Perú real” e da experiência de voluntariado que queria ter. E não me enganei, ser ayacuchano é ser serrano e ser peruano ao máximo, ainda que haja outras culturas muito diferentes mas igualmente peruanas, como as tribos nativas da selva e as comunidades de influência africana na costa.

        Depois de nove meses de permanência neste país já estou tão em casa como em Lisboa, e tenho rotinas e lugares tão habituais que já sinto que esta é a minha vida, e me custa imaginar que daqui a pouco já não estarei aqui. Entranhei os costumes com facilidade, ganhei um afecto imenso pelas particularidades deste povo e considero que conheço bastante bem o Perú, e ainda melhor Ayacucho. Muitos destes costumes vão fazer-me falta em Lisboa, sobretudo a simplicidade com que as pessoas vivem as suas vidas sem stress. Confesso que me sinto orgulhosa da familiaridade com que me movo entre os peruanos, e só não me esqueço que não sou uma deles porque continuam a olhar para mim na rua por ser loira e de olhos azuis, e porque o meu ser português vem ao de cima constantemente pelas saudades que sinto do meu país e das minhas tradições. E neste momento em que falta apenas um mês para voltar a Portugal, o meu coração divide-se entre a euforia de voltar a ver o mar da caparica e a estranheza de deixar de acordar com as montanhas ao fundo da janela. Sinto na pele a frase que diz “A minha casa é onde está o meu coração”, e constato que o meu coração pode facilmente estar em qualquer lugar do mundo. E parte dele vai ficar para sempre aqui no Perú, nesta cidade perdida a dois mil e setecentos metros de altura no meio dos Andes, onde as pessoas são baixotas e na rua há tantas crianças como cães, onde posso comprar um quilo de fruta pelo preço de um café em Portugal, onde o sol queima tanto que tenho de pôr protector solar diariamente, onde já tenho uma família de amigos tão grande e tão confiável como não podia imaginar há nove meses atrás.

          No final, a viagem mais completa é a que nos faz pertencer.

Meninas regressando da escola primária com o uniforme obrigatório, comendo chupa-chupas de gelo.
Quínua, Ayacucho.

Sem comentários:

Enviar um comentário