quarta-feira, 21 de novembro de 2012

DIA 39 – AS CIDADES E AS PESSOAS QUE AS HABITAM

                Fim de semana em Lima é como “ir a casa”. Reconheço a mesma sensação de quando ia passar um fim de semana a casa dos meus pais na Caparica, durante os três anos que vivi em Lisboa. A sensação de sair do meu ambiente quotidiano e passar dois dias noutro lugar que também é a minha casa e onde está a minha família. É isto que eu sinto na casa dos Missionários Combonianos em Lima.

             Já vos contei da recepção que tive por parte dos combonianos. Desde o primeiro momento em que me conheceram receberam-me como membro da família e atribuíram-me, com uma generosidade impagável, uma “propriedade honorária” do quarto onde dormi pelo período da minha permanência no Perú, para voltar as vezes que quiser e ficar o tempo que quiser. Desta vez não foi diferente. Pelo contrário. Cheguei à casa comboniana com a familiaridade de quem chega à sua própria casa e todos se alegraram com a minha visita depois de um mês de ali ter estado, fizeram-me mil perguntas curiosas sobre a minha experiência em Ayacucho e convidaram-me a partilhar das suas actividades de fim de semana.

            Durante a semana os seminaristas combonianos frequentam a universidade de teologia e têm um estilo de vida típico de estudante universitário. Aos fins de semana dividem-se por várias paróquias da cidade e fazem trabalho pastoral. As paróquias onde vão estão localizadas nas zonas mais pobres de Lima, nas favelas periféricas que cobrem as colinas que rodeiam a cidade, onde as casas são feitas de contraplacado, onde não há água canalizada nem esgotos, não há estradas asfaltadas e só há pouco mais de dois anos começou a chegar a electricidade. Aproveitei a possibilidade de conhecer uma realidade tão radicalmente diferente da minha e fui com eles visitar duas favelas: uma na zona de Chorrillos e outra na zona de Pamplona.

É difícil descrever a extrema pobreza em que os habitantes das favelas limenhas vivem. Pobreza física e pobreza intelectual. Trabalham todos os minutos do dia, todos os dias da semana, porque quando não trabalham não comem. Usam a mesma roupa até estar demasiado suja para ser suportável. Só têm um par de sapatos. Não têm casa de banho, e a água chega diáriamente através de camiões cisterna. Têm de trepar encostas íngremes de colinas de areia ou rocha cobertas de pó para chegar a casa. E têm de viajar todos os dias em combis minúsculos, baixos e apertados durante mais de uma hora para chegar ao centro da cidade onde vão vender nos mercados e fazer outros trabalhos precários. O único objectivo de vida aqui é trabalhar para comer e ter o essencial para sobreviver. Sobreviver. Considero um milagre que as crianças que aqui crescem tenham desejo de ir à escola e de estudar, vivendo no meio de tal desolação.

Favela de Chorrillos



Escadas de acesso às casas 

Casas de contraplacado e chapa de zinco



 Cão de raça peruana (preto e sem pelo) vestido com roupinha



Chorrillos by night

                Fui com dois seminaristas combonianos visitar uma senhora que tem dois filhos adolescentes com um grau intermédio de paralesia cerebral. Ela e o marido trabalham no mercado central de Lima, a Parada (onde há cerca de duas semanas houve motins e confrontos que duraram vários dias e morreram muitas pessoas) e deixam os dois rapazes trancados em casa o dia todo para que não fujam. Há poucos dias a senhora ficou ferida porque um mototaxi lhe passou em cima do pé. Como é diabética teve problemas de cicatrização e tiveram de lhe amputar um dedo. Agora a senhora não pode caminhar e passa o dia fechada em casa com os dois filhos enquanto o marido vai trabalhar. Quando fomos visitá-la não podia sequer abrir-nos a porta porque não consegue sair da cama, e falámos com ela pela janela. Ao lado da cama tinha a “sanita”. E a casa não devia ser limpa há meses. E o pé, envolto em ligaduras e sacos de plástico, deixava intuir um aspecto horroroso. O que é que se pode dizer de consolo a uma mulher jovem a viver nestas condições??? Eu só pensava na sorte tremenda, enorme, inesgotável e às vezes desapreciada que eu tenho em não ser ela e ser eu. Em ser eu todos os dias da minha vida, desta vida simples e às vezes precária mas tão boa, tão boa, tão boa que é a minha vida.


Favela de Pamplona


                A natureza dotou as crianças da inconsciência e da imaginação.  É por isso que as crianças vivem brincando, jogando e SORRINDO no meio da pobreza e da desolação. Mas os traumas que guardam dentro acompanham-nas para sempre e transformam-nas em adultos que vão perpetuar o ciclo vicioso da vida desolada e violenta das favelas. Por isso a educação das crianças é tão essencial. Porque é muito difícil mudar os adultos. Mas às crianças podemos ajudá-las abrindo-lhes a mente e os horizontes, mostrando-lhes outras possibilidades para a sua vida que não sejam só trabalhar e ter filhos, e dar-lhes os instrumentos para que alcancem essas possibilidades.




                Foi um fim de semana intenso e cansativo, dois dias que pareceram uma semana. É bom sair de Ayacucho, mudar de ares, ver o mar (mesmo que seja este Pacífico cinzentão) e sentir este aconchego familiar que me surpreende ao pensar que estou no Perú. Sinto-me em casa no Perú.

O mais curioso é que Lima é, provavelmente, a cidade mais feia que eu conheço. Os lugares interessantes contam-se pelos dedos de uma mão e não me entusiasmam por aí além. E eu que adoro cidades! Mas apesar da sua imensidão caótica, da paisagem desolada e do centro histórico com pouca piada, esta cidade inspira-me um sentimento de ternura surpreendente. Talvez seja da sensação de conquista de já me orientar nas diferentes zonas, de saber onde está o quê, de saber como ir para onde, de me sentir tranquila e à-vontade nos combis (acreditem, é um conquista de valor!). Mas não é só isso. É que Lima é uma cidade feia feita de pessoas bonitas. Talvez tenha sido uma grande coincidência e sorte minha, mas até agora só conheci gente boa nesta cidade e de cada vez que cá venho custa-me mais ir embora.

Ah, lembram-se do taxista Júlio? Que me levou ao autocarro quando vim para Ayacucho a primeira vez e me enganei nas horas? Ele tinha-me deixado o número dele para quando voltasse a Lima e precisasse de um táxi. Resolvi ligar-lhe para me levar de novo ao autocarro. E ele não só se lembrava de mim como vinha, juntamente com a esposa, cheio de perguntas e curiosidade sobre a minha vida em Ayacucho. E, tal como os combonianos, perguntou-me quando planeio voltar a Lima e quando nos voltamos a ver. E eu por agora não sei. Mas fico com vontade que seja para breve.

1 comentário:

  1. Amiga Sílvia!

    É um prazer ler o teu "blog" e as tuas narrativas "ditadas" pelo coração. É como se "nós" estivéssemos aí contigo a vivenciar o teu dia a dia. Que bom existirem neste "nosso" mundo pessoas (como todos vós) que partilham com os outros o que de melhor podem dar. Obrigado pelo exemplo...
    Um beijinho,

    António Serra

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