Já vos contei da recepção que
tive por parte dos combonianos. Desde o primeiro momento em que me conheceram
receberam-me como membro da família e atribuíram-me, com uma generosidade impagável, uma “propriedade honorária”
do quarto onde dormi pelo período da minha permanência no Perú, para voltar as
vezes que quiser e ficar o tempo que quiser. Desta vez não foi diferente. Pelo
contrário. Cheguei à casa comboniana com a familiaridade de quem chega à sua
própria casa e todos se alegraram com a minha visita depois de um mês de ali
ter estado, fizeram-me mil perguntas curiosas sobre a minha experiência em
Ayacucho e convidaram-me a partilhar das suas actividades de fim de semana.
Durante a semana os seminaristas
combonianos frequentam a universidade de teologia e têm um estilo de vida
típico de estudante universitário. Aos fins de semana dividem-se por várias
paróquias da cidade e fazem trabalho pastoral. As paróquias onde vão estão
localizadas nas zonas mais pobres de Lima, nas favelas periféricas que cobrem
as colinas que rodeiam a cidade, onde as casas são feitas de contraplacado,
onde não há água canalizada nem esgotos, não há estradas asfaltadas e só há
pouco mais de dois anos começou a chegar a electricidade. Aproveitei a
possibilidade de conhecer uma realidade tão radicalmente diferente da minha e fui
com eles visitar duas favelas: uma na zona de Chorrillos e outra na zona de
Pamplona.
É difícil descrever a extrema pobreza em que os habitantes das favelas
limenhas vivem. Pobreza física e pobreza intelectual. Trabalham todos os
minutos do dia, todos os dias da semana, porque quando não trabalham não comem.
Usam a mesma roupa até estar demasiado suja para ser suportável. Só têm um par
de sapatos. Não têm casa de banho, e a água chega diáriamente através de camiões
cisterna. Têm de trepar encostas íngremes de colinas de areia ou rocha cobertas
de pó para chegar a casa. E têm de viajar todos os dias em combis minúsculos,
baixos e apertados durante mais de uma hora para chegar ao centro da cidade
onde vão vender nos mercados e fazer outros trabalhos precários. O único
objectivo de vida aqui é trabalhar para comer e ter o essencial para
sobreviver. Sobreviver. Considero um milagre que as crianças que aqui crescem
tenham desejo de ir à escola e de estudar, vivendo no meio de tal desolação.
Favela de Chorrillos
Escadas de acesso às casas
Casas de contraplacado e chapa de zinco
Cão de raça peruana (preto e sem pelo) vestido com roupinha
Chorrillos by night
Fui com dois seminaristas
combonianos visitar uma senhora que tem dois filhos adolescentes com um grau
intermédio de paralesia cerebral. Ela e o marido trabalham no mercado central
de Lima, a Parada (onde há cerca de duas semanas houve motins e confrontos que
duraram vários dias e morreram muitas pessoas) e deixam os dois rapazes
trancados em casa o dia todo para que não fujam. Há poucos dias a senhora ficou
ferida porque um mototaxi lhe passou em cima do pé. Como é diabética teve problemas
de cicatrização e tiveram de lhe amputar um dedo. Agora a senhora não pode
caminhar e passa o dia fechada em casa com os dois filhos enquanto o marido vai
trabalhar. Quando fomos visitá-la não podia sequer abrir-nos a porta porque
não consegue sair da cama, e falámos com ela pela janela. Ao lado da cama tinha
a “sanita”. E a casa não devia ser limpa há meses. E o pé, envolto em ligaduras
e sacos de plástico, deixava intuir um aspecto horroroso. O que é que se pode
dizer de consolo a uma mulher jovem a viver nestas condições??? Eu só pensava
na sorte tremenda, enorme, inesgotável e às vezes desapreciada que eu tenho em
não ser ela e ser eu. Em ser eu todos os dias da minha vida, desta vida simples
e às vezes precária mas tão boa, tão boa, tão boa que é a minha vida.
A natureza dotou as crianças da
inconsciência e da imaginação. É por
isso que as crianças vivem brincando, jogando e SORRINDO no meio da pobreza e
da desolação. Mas os traumas que guardam dentro acompanham-nas para sempre e
transformam-nas em adultos que vão perpetuar o ciclo vicioso da vida desolada e
violenta das favelas. Por isso a educação das crianças é tão essencial. Porque
é muito difícil mudar os adultos. Mas às crianças podemos ajudá-las
abrindo-lhes a mente e os horizontes, mostrando-lhes outras possibilidades para
a sua vida que não sejam só trabalhar e ter filhos, e dar-lhes os instrumentos
para que alcancem essas possibilidades.
Foi
um fim de semana intenso e cansativo, dois dias que pareceram uma semana. É bom
sair de Ayacucho, mudar de ares, ver o mar (mesmo que seja este Pacífico
cinzentão) e sentir este aconchego familiar que me surpreende ao pensar que
estou no Perú. Sinto-me em casa no Perú.
O mais curioso é que Lima é, provavelmente, a cidade mais feia que eu
conheço. Os lugares interessantes contam-se pelos dedos de uma mão e não me
entusiasmam por aí além. E eu que adoro cidades! Mas apesar da sua imensidão
caótica, da paisagem desolada e do centro histórico com pouca piada, esta
cidade inspira-me um sentimento de ternura surpreendente. Talvez seja da
sensação de conquista de já me orientar nas diferentes zonas, de saber onde
está o quê, de saber como ir para onde, de me sentir tranquila e à-vontade nos
combis (acreditem, é um conquista de valor!). Mas não é só isso. É que Lima é
uma cidade feia feita de pessoas bonitas. Talvez tenha sido uma grande
coincidência e sorte minha, mas até agora só conheci gente boa nesta cidade e
de cada vez que cá venho custa-me mais ir embora.
Ah, lembram-se do taxista Júlio? Que me levou ao autocarro quando vim
para Ayacucho a primeira vez e me enganei nas horas? Ele tinha-me deixado o
número dele para quando voltasse a Lima e precisasse de um táxi. Resolvi
ligar-lhe para me levar de novo ao autocarro. E ele não só se lembrava de mim como
vinha, juntamente com a esposa, cheio de perguntas e curiosidade sobre a minha
vida em Ayacucho. E, tal como os combonianos, perguntou-me quando planeio
voltar a Lima e quando nos voltamos a ver. E eu por agora não sei. Mas fico com
vontade que seja para breve.
Amiga Sílvia!
ResponderEliminarÉ um prazer ler o teu "blog" e as tuas narrativas "ditadas" pelo coração. É como se "nós" estivéssemos aí contigo a vivenciar o teu dia a dia. Que bom existirem neste "nosso" mundo pessoas (como todos vós) que partilham com os outros o que de melhor podem dar. Obrigado pelo exemplo...
Um beijinho,
António Serra