quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Dia 4 – AYACUCHO, A HERÓICA

                Eu detesto viajar de noite e chegar de manhã. Ou melhor, não é que deteste, viajar de noite até tem um certo misticismo, e a paisagem que não se vê mas se percebe pela luz da lua e pelo rasto dos faróis do autocarro (sobretudo no meio das montanhas, onde não há iluminação pública) torna-se sugestiva. O que eu destesto, na verdade, é chegar a um sítio de manhãnzinha, com o sol a bater de chapa da fronha, depois de uma noite mal dormida, e sentir-me lerda e cansada logo às sete da manhã. É um dia perdido, quer durmas para recuperar, quer não durmas para manteres o horário normal e dormir só à noite.

                Eu cheguei às sete da manhã a Ayacucho e sabia quais as pessoas que me vinham esperar, mas não sabia como eram. Foi a minha colega de casa, Celsa, espanhola de Valência e psicóloga na Mama Alice, que me identificou. Também não seria difícil, pois a mala, a mochila, a viola, a estatura, o cabelo e as feições denunciavam-me. E em casa esperava-me uma recepção um pouco menos calorosa mas igualmente querida, com direito a cartazes na parede do quarto e almoço de boas vindas com o grupo de amigos da Celsa.





                Ayacucho é uma cidade amorosa cercada de montanhas e encaixada a dois mil e setecentos metros de altura. Nos primeiros dias senti alguma dificuldade em respirar e um cansaço extremo, mas depois passou. A cidade é famosa porque foi aqui perto que ocorreu a última batalha que ditou a libertação não só do Perú mas de toda a América Latina do domínio espanhol. E os seus habitantes são muito orgulhosos disso. Também é famosa porque nos anos oitenta e noventa esta região foi palco de episódios marcantes de violência por causa do grupo terrorista Sendero Luminoso, que fazia guerrilha para tentar derrubar o governo de direita e instalar uma república comunista. Nunca conseguiram e entretanto o líder foi preso, mas muitas pessoas despareceram e morreram durante esse período. Hoje em dia, todos os habitantes de Ayacucho que têm a minha idade têm uma história de morte ou desaparecimento na família próxima. Felizmente, o grupo terrorista desfez-se e hoje Ayacucho é uma cidade pacífica. Sem dúvida pobre, mas pacífica. E com alguns poucos turistas, e outros tantos voluntários estranjeiros, de modo que não me diluo na multidão mas sinto-me um pouco menos extra-terrestre do que em Lima.

O centro da cidade é uma praça, a Plaza de Armas, igual a todas as cidades sul americanas de colonização espanhola, rodeada de arcadas e edifícios importantes (catedral, câmara municipal, centro cultural e muitos bares e restaurantes), onde desembocam ruas cheias de lojas de todo o tipo. Uma das ruas leva ao Arco de San Francisco, antiga porta da cidade. E aí perto está o mercado. Ahhhh o mercado. Adoro mercados. E este é uma verdadeira esperiência esotérica, de contrastes. Frutas de todos os tipos, lindas cheirosas e muito apetitosas. Legumes que nunca tinha visto. Pão, queijo e carne ao ar e às moscas, com um cheiro de dar náuseas. E sumos frescos, feitos no momento, em que quase quatro copos custam cerca de um euro. E artesanato. Ahhhhhh o artesanato peruano. Mantas, tapetes, bolsas, calças, camisolas, garruços, cachecóis. Já sei com o que é que vou encher os meus vinte e três quilos de mala daqui a dez meses.

A minha rua, com vista para as montanhas: Jirón Callao

Plaza de Armas


A Catedral e Estátua do General Sucre, um dos libertadores do Perú e da América Latina


A Porta de San Francisco

Gelado artesanal de leite e sésamo, disponível aos fins de semana na Plaza de Armas

                As pessoas são genericamente amáveis. E o grupo de amigos da Celsa acolheu-me bem. É um grupo heterogéneo, com tanto de peruanos como de estranjeiros, com a particularidade de nenhum deles ser de Ayacucho, o que faz com que ao estarem todos cá sozinhos o grupo de amigos se torna a família, e fazem muitas coisas e passam muito tempo juntos.

                Agora estou no meu quarto cor-de-rosa, com muita luz e sem estores, com muito sono e um bocado atordoada. Estou no Perú. Estou em Ayacucho. E depois de amanhã começa o meu voluntariado. So let the games begin.

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